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Português gesticulado é melhor que portunhol sem vergonha.
Eu sei a personalidade de uma pessoa analisando o que ela calça.
Frear um carro com o pé esquerdo não é boa ideia.
Só o Roberto pode empregar "lhe" nas suas canções.
Eu sei dar beijo que cura soluço.
Eu leio o futuro na borra de Nescau.
Eu sei de tudo isso. E eu sei de muita coisa.
Eu só nunca, nunca sei se o beijo do segundo encontro vai ser na boca ou no rosto.
Merda.
Essa noite sonhei com você
no meu sonho, você casava
com a Mariana Ximenez
que golpe miserável
que golpe lazarento
você, não contente em casar,
na minha cara,
ainda casava com alguém
que eu tanto detesto
detesto tanto quanto
se podem detestar pessoas
que você nunca conheceu de fato
Acordei
e não houve alívio
porque por mais que eu queira
e saiba que é saudável
você bem longe de mim
você um dia vai casar
e qualquer uma delas
qualquer uma que seja
será para mim
uma Mariana Ximenez.
Ele nasceu durante meu hiato de 10 anos no Juazeiro do Norte. Esse é o nosso primeiro encontro. Agora ele já tem 8 anos e está me observando com um olhar curioso. Mas é família, e devo acrescentar, família nordestina. Isso quer dizer que a gente já se gosta só pelo cheiro. Aos poucos, trocando as primeiras palavras, começo a compreender que o enigma nos seus olhinhos está longe de envolver somente as curiosidades inerentes sobre a prima da cidade grande (que era somente um nome até então). É uma investigação séria sobre algo que só uma incógnita genuinamente infantil poderia suscitar.
- Ei... quantos anos tu tem?
- Vinte e oito.
- EITA! - ele lança impiedoso. Graças à grande distância do período da minha TPM, eu encaro com graça a inevitável franqueza de uma criança.
Mas o ponto de interrogação ainda não se apaga do seu rostinho alvo. Com uma expressão ainda mais confusa, ele investe uma nova pergunta:
- Tu é jovem?
Aí está. Olho ao meu redor e compreendo defintivamente que é mesmo difícil me catalogar. Eu não sou como os outros primos pequenos, e também não pareço sua mãe. Eu sou muito grande pra ser uma criança e muito solteira pra ser gente grande.
- Jovem? Acho que sim. Espero que sim.
Ele abriu um sorrisão, ainda cheio de dentes de leite. E eu acompanhei como num bocejo. Resta ainda uma última dúvida. Ele tá pronto pra encerrá-la:
- Qué dizê que tu pode brincar com a gente?
- Sim. Claro que posso.
- Então bora brincar de algo que criança e jovem pode brincar.
E aí, colega, entenda que se você aceitou o desafio de ser jovem, você não tem a obrigação que teria uma criança de gastar toda a sua energia tentando alcançar a velocidade da luz. Mas espera-se um pouco de esforço da sua parte. Pelo menos, um pouco mais do que investiria alguém que faz parte da tag "gente grande".
* Trecho da música "Do you remember Laura", da lindíssima Lulina.
Querida Odete;
Gostaria de dizer que agora sou a nova proprietária do exemplar de "O Pequeno Príncipe" que um dia você presenteou sua "altamente" estimada amiga Alta. Você sabe, sob alguma pressão de algumas pessoas queridas, eu finalmente adquiri o livro num desses sebos da cidade. Confesso que me senti um pouco constrangida de ler esse clássico agora pela primeira vez, aos 28 anos. Hoje é um tanto mais difícil, afinal, tornei-me alvo de um julgamento fácil: o livro carrega o residual de toda Miss, e além disso, como costumo ler no ônibus, creio o quanto inspira piadas a imagem de um adulto sentado num banco alto, lendo livros com figuras aquareladas. Mas a verdade é que os meus planos de lê-lo confinada no meu quarto foram completamente frustados. A dedicatória do autor logo acendeu uma luzinha dentro da alma, e o livro, antes que eu pudesse ter qualquer controle, enfiou-se na minha bolsa, desejando acompanhar-me, desejando ser lido, mesmo sob o olhar de desaprovação dos outros passageiros.
A sua dedicatória à amiga "Alta" também merece alguma atenção. Eu não sou fã de trocadilhos e honestamente, não me agradou muito o duplo sentido empregado com o nome "Alta". Mas você me ganhou por um pequeno detalhe. A delicadeza das linhas diagonais a lápis, construídas para apoiar sua mensagem a caneta, retinha e caprichada, exatamente como devem ser escritas dedicatórias em contracapas de livros tão especiais. É por causa das suas tênues linhas traçadas a lápis que quero te pedir perdão por esse livro agora pertencer a mim, e não mais à estimada Alta. Perdoe-a, ou sua família, por ter dado longa vida à esse livro fabuloso, e dê-lhes algum crédito por este livro ter chegado às minhas mãos em tão bom estado. Eu prometo, em compensação, ter mais atenção ao número de pôr-do-sóis assistidos que aos números que indicam peso, idade e o orçamento no fim do mês. Prometo desenhar uma estante onde guardar esse livro com segurança, longe de baobás e espinhos. Uma estante iluminada com luzinhas coloridas. As luzes do natal de 1976.
Se apaixonar pela segunda vez por alguém talvez seja mais raro que amar alguém por toda uma vida, e por isso mesmo, mais fantástico. Quando você olha os mesmos olhos e sente o mesmo cheiro e ri das mesmas coisas de antes e ainda assim, descobre uma nova magia em tudo isso, você se sente mais premiado que da primeira vez.
Apaixonar-se pela primeira vez por alguém é quase um engano. Você está anestesiada por coisas que sempre encantam na primeira conversa, no primeiro café compartilhado, no primeiro beijo. Quando você se apaixona de novo por essa mesma pessoa, tudo é mais honesto. A pessoa deixa de ser um mito e se torna um ser humano com falhas, cáries e bafo matinal.
Quando você se apaixona pela segunda vez pela mesma pessoa, você olha com carinho pra sua celulite. Aceita que nunca vai ter o nariz que desejava. Acorda e se observa, achando graça das próprias olheiras, da bagunça insondável que se tornou o seu cabelo, e também passa a achar isso tudo muito bonito e verdadeiro. É um refil de esperanças, já que todo sentimento é frágil e pode morrer de um dia pro outro, inexplicavelmente.
Mas o encantamento renovado por uma mesma pessoa te faz acreditar que as coisas podem mesmo durar, que a vida pode ser boa e que pelo menos em um momento dela, é muito possível mandar um enorme foda-se para a psicologia evolucionista, Charles Darwin e todos os pesquisadores infelizes de institutos britânicos.
Em 2009, desejo que todas as pessoas do mundo substituam as perguntas:
- E namoradinho? Já tem um?
- Já sabe que faculdade vai fazer?
- Já casou?
- Mas bonita desse jeito? Solteira porque quer, né?
- E os filhos? Tão encomendando?
- E os netinhos, quando vêm?
- Pra quando as bodas?
Por:
- De que cor está seu dia hoje?
- Qual sua sobremesa preferida?
- Que forma você enxerga naquela nuvem?
- Você já viu uma estrela cadente?
- Quem é a última pessoa em quem você pensa, antes de dormir?
- Você já tentou frear o carro com o pé esquerdo?
- Você guarda cartas escritas à mão?
* trecho da música "Todo futuro é fabuloso" de Bazar Pamplona
Eu sei que esse não era o acordo, mas o que é a amizade a dois centímetros de um beijo?
A vida não cansa de me dar rasteiras. E dessa vez foi especialmente diligente em ser imprevisível. A ponto de realizar, com riqueza de detalhes, exatamente o que eu desejei que acontecesse.
Criei um documento entitulado "Pedro diz". Trata-se exatamente disso. Pedro diz coisas lindas que merecem ser registradas e é criminosamente modesto demais para publicá-las no blog. À medida que a lista vai crescendo, eu imagino que se transforma num daqueles livrinhos de sabedoria. Desses que geralmente ficam no balcão de algum restaurante indiano. Enquanto você paga a conta, a simpática senhora no caixa a convence a abrir uma página. Você fica sem graça com a situação porque está sendo coagida a reanimar o fio de esperança necessário para investir nesse minuto, nesse bom presságio. Ela sorri, elucidativa, enquanto empurra o livrinho pra você, como se você não tivesse escolha já que a máquina do VISA ainda está ocupada. Você torce pra que não saiam frases do tipo "plante mais árvores". Há dias tão cinzas que tudo que você espera é que um livro desses te surpreenda com um "derrube duas árvores".
Ainda não há uma edição impressa de "Pedro diz". Na realidade, o documento não tem mais do que uma página. O documento também existe porque Pedro não está diuturnamente online. Então eu uso a mão do lado intuitivo para escolher uma frase. Fecho os olhos e a ponta do meu dedo direito pressiona alguns pixels na tela iluminada do Word. Abro os olhos e está lá. Uma frase mágica e a marca da minha digital engordurada no monitor.
"Tenho tantas saudades desse seu disco riscado", Pedro diz. E ainda assim, tão descontextualizado, faz minha alma iluminar-se.
E foi bem assim, eu olhei pro recipiente, ele ficou ali imóvel como costumam ficar os objetos inanimados de inox, e eu decidi ousar. Pus um pedaço minúsculo de joelho de porco no meu prato. Era um exercício de abstração. Se eu não tivesse essa experiência, eu ficaria para sempre presa num período da infância, aquela em que nos deixamos sugestionar facilmente pelo nome estranho dos pratos ou pelas comidas de cor verde.
Tentei me convencer que era só mais uma etapa a vencer, ali naquele restaurante self-service. Com o tempo, eu aprendi a apreciar cebola, mostarda, culinária japonesa e noticiário na TV. Foram passos gigantescos que me trouxeram à fase adulta. Não era um prato alemão de nome esquisito que ia me impedir de avançar. Afinal, pensei comigo mesma, muitos momentos da minha vida foram dedicados a comer porco. Eu adoro o sabor do bichinho. Tudo o que ele pode oferecer. Lingüiça, bacon, torresmo, pernil... NÃO HAVIA UMA SÓ COISA QUE EU NÃO GOSTASSE DELE e dizer isso em caixa alta é de certa forma libertador, porque quem gosta de porco, gosta com culpa. Pelo menos eu cresci numa geração em que é quase feio admitir o quanto se gosta de porco. Afinal, é sujo, não é? Hoje não é mais, ninguém cria mais porco na lama, mas na minha infância, a imagem da carne de porco sempre esteve associada a muitos litros de água escaldante. Comer porco fora de casa era um atestado de suicídio. Porco lembra impureza. Lembra aula de biologia. Lembra zoonose. Lembra proibição judaica. Acho que é por isso que ainda hoje eu me sinto vigiada quando boto uma bistequinha no prato. Alguém deve estar me julgando em silêncio.
Restaurante self-service tem dessas. Se você não põe nada de salada, é porque tem paladar infantil. Se põe só salada, é uma neurótica com mania de dieta (que provavelmente vai compensar a ausência do pastelzinho com uma torta mousse ultra-calórica de sobremesa). Se põe muita fritura, é uma inconseqüente de maus hábitos. Se escolher massa, alguém vai conferir seu prato e a sua silhueta, alternadamente. E vai me dizer que você nunca olhou com maus olhos um obeso almoçando no Mc Donald’s? Nem nunca torceu o nariz pra patricinha que repete como um mantra a frase “só um pedacinho, bem pequeno” pra qualquer pessoa que for lhe servir alguma coisa?
Pois bem. Hoje deveria ser um dia de novas experiências. De novos desafios. De pouco se foder com o que os outros acham do seu prato. Até o salsichão ajudou a compor a refeição. E salsichão também é polêmico. Não se come salsichão na presença de adolescentes, por exemplo. Se eles não fizerem uma piada pejorativa, podem entrar em combustão espontânea. Fora todo o residual negativo de qualquer salsicha. Nenhum outro alimento tem pior reputação. Já foram comparadas até mesmo à política e todo mundo diz ter conhecido uma fábrica de salsichas de perto. Mas eu não estou falando de salsichas. Estou falando do joelho de porco. Esse pedaço que também faz parte do animalzinho que eu sempre achei saboroso. Por que então parecia tão pitoresco? Por Deus, é igualmente perturbador comer outras partes do seu corpo! Na verdade só é mais fácil nas outras situações porque alguém foi esperto o suficiente pra fazer todo o resto parecer comida, não seres vivos. Alcatra, picanha, filet mignon. Mas nunca bochecha de vaca, bunda de boi, barriga de porco. Eu tenho joelhos. Eles não parecem apetitosos. Mas joelho é só mais um pedaço que os alemães decidiram implementar na dieta e a maioria deles parece bem satisfeito. Até deixaram o resto mundo associar o prato à sua cultura, não é mesmo?
Racionalizei tanto em cima do mísero pedaço de carne que nem achei que teria mais problemas com a palavra “joelho”. Mas como ela me incomodava! Tentei convencer-me que, assim como tudo que se prova pela primeira vez destemidamente, uma vez na boca seria fácil superar todo o peso que a palavra “joelho” carrega, e eu poderia apreciar, encantada, o sabor ímpar daquela iguaria. Dirigi o garfo, estoicamente em direção à boca. E então me senti vencida pela potência inigualável da semântica. Eu posso garantir, minha gente, aquela porcaria tem MESMO gosto de joelho!
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