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Ela resolveu enfiar o dedo na ferida e decidiu ir sozinha ao cinema no dia dos namorados. Escolheu um filme que tem sido exibido desde 2007, sobre pessoas solitárias com problemas de relacionamento, naturalmente.
É a primeira sessão da tarde e, para seu alívio, ainda há poucos casais no cinema. Acomodou-se desconfortavalmente, deslizando o próprio corpo na poltrona, de forma que não fosse possível ser enxergada pelos casais da sala. E então, a uma poltrona de distância, o improvável. Usando os mesmos métodos de distanciamento do campo de visão alheio, estava um rapaz. Ele segurava com dificuldade uma pipoca tamanho combo especial de dia dos namorados. Era um desafio comer aquilo sozinho. A garota do caixa também tentara (com aquele entusiasmo monofônico) persuadí-la a levar a pipoca combo especial do dia dos namorados por um preço reduzido. E também tentara convencê-la a levar o tamanho grande do refrigerante diet. Ela sabia que a pipoca tamanho combo especial de dia dos namorados era o maior atestado de sua solidão. E que era necessário estar muito deprimido pra pedir um refrigerante grande para se beber sozinho, mesmo que fosse diet.
Observando o rapaz de rabo de olho, ela imaginou que já devia ter suspeitado que ir sozinha ao cinema no dia dos namorados era a melhor forma de encontrar alguém tão solitário quanto ela. Geralmente, buscar alguém por outros meios é como tentar achar uma agulha no palheiro. Mas nesse caso, ele era uma vela acesa no escuro. Uma bela vela, digna de admiração.
E aconteceu, que ali no meio dos trailers e dos beijos incovenientemente sonoros, um outro ruído atraiu a sua atenção: o rapaz se engasgara com uma pipoca e tossia vigorosamente. Foi o necessário pra que ela eliminasse o assento de distância e oferecesse um gole do seu refrigerante pequeno diet. E aquela pipoca tamanho combo especial de dia dos namorados finalmente cumpriu sua missão de servir dois, e não um só.
- Ei, moço, você pode me arranjar um cigarro?
- Claro, claro.
Ele se apressa em acendê-lo, dando especial atenção à marca de batom marcando o filtro.
- Obrigada.
Alguns instantes de silêncio e ensaios mentais. Também uma troca de olhares mentirosa. Daquelas que disfarçam mal o alvo de observação.
- Você sabia que fumantes têm menos probabilidade de desenvolver Parkinson?
- É sério? - ela sorri. - E qual o benefício da minha vodka?
- O primeiro deles é que eu devo aparentar 30% mais bonito depois dessa dose. Além disso, ela reduz suas chances de doenças cardíacas e vasculares.
- Impressionante! Você é médico?
- Magina. Sou dramaturgo. E eu tenho muito tempo livre pra inventar abordagens que não sejam "você vem sempre aqui?".
- Nesse caso, sou uma mulher de sorte. Que outras abordagens você tem disponíveis?
- Você tá pensando em usar meu repertório numa próxima oportunidade?
- Quem sabe.
- Bem, você pode comentar "belo dia pra se jogar golfe, não?". Mas use isso durante uma tarde ensolarada, ok?
- Ok, isso foi bem ruim.
- E quem disse que eu estou disposto a ensinar as boas pra você?
Eles riem. Ele pára de rir antes dela e a observa.
- Taí. Sua melhor abordagem.
- Como assim?
- Esse sorriso. Basta ele.
Ele aproveita que ela ficou corada e continua.
- Olha, eu vou te confessar uma coisa.
- Conta.
- Eu já tinha notado você lá dentro. Vim tentar pensar em algo inteligente enquanto fumava um cigarro, que já tava na metade, e eu ainda só tinha imaginado coisas estúpidas pra dizer. Cada vez que eu achava que tinha a frase perfeita pra começar uma conversa, eu olhava você de longe e tinha a certeza de que ainda não era bom o suficiente. Tava me sentindo derrotado, até você aparecer e pedir um cigarro.
- Posso confessar uma coisa também?
- Claro.
- Eu não fumo.
- Maitê? Você tá aí?
(Uma voz abafada prova que há vida além da parede imunda)
- Jonas? Jonas! Eu já tava preocupada! Quase mandei o seu Elias arrebentar sua porta! Tava ouvindo música no fone de novo? Dormiu na banheira? Teve um ataque epilético?
- Não, não, nada disso. Banheira? Porra, tem banheira no teu apê? E a gente paga o mesmo condomínio?
- Jura que você não me ouviu te chamar?
- Eu não tava em casa. Acabei de chegar.
- Você saiu? Saiu de casa?
- Saí. Acabei de chegar.
- Mentira!
- Verdade.
- Mentira!
- Verdade mesmo. Posso te contar como foi...
- Mentira!
- ... ou podemos ficar a noite inteira nisso, você escolhe.
(Cara, ela ri a valer. E eu só uso "a valer" com sotaque do interior)
- Desculpa... é que já faz tanto tempo, né? Me assustei quando você não respondeu. Já me acostumei a ter você por perto. É como se tivesse sempre um homem em casa. Sem o incoveniente da tampa do banheiro levantada ou a toalha molhada em cima da cama.
- Ah, quer dizer que é só pra isso que eu sirvo? Utopia do homem perfeito?
(Agora os dois resolveram rir, mas por motivos diferentes. Ela até que achou ele meio esperto, e ele só riu de nervoso. Porque apesar de ter se sentido um pouco esperto por ter dito isso, depois se sentiu um completo idiota. Lembrou dos metidos que acham bonito usar a palavra "utopia" mas que sem a ajuda do Wikipedia jamais saberiam quem é Thomas More)
- Me conta das suas aventuras de hoje.
- Ah, eu preferi não me arriscar muito. Um passo de cada vez. Trinta e dois, pra ser mais preciso. Fui até essa casa de bailes da esquina.
- Você esteve lá? Jura mesmo? Eu também tava lá! Cheguei há uns vinte minutos.
(Silêncio. Mais longo pra ele que pra ela. A tal da teoria da relatividade explica isso. Vai lá ver no Wikipedia)
- Como você tava vestido?
(Ele olha pras próprias roupas. Está com um conjunto verde musgo que nunca viu um ferro na vida)
- Uma camisa amarela e calça bege.
(Mal gosto do cão)
- E você?
(A danada tá vestida de azul. Mas também vai dizer outra coisa)
- Um vestido vermelho.
(Ficam ali, quietinhos de novo, ensaiando mais coisas pra dizer)
- Talvez você tenha me tirado pra dançar.
- Como?
- Hoje no baile. Talvez a gente tenha dançado junto e não saiba.
- Eu não sei dançar, nunca tive jeito. Mas gosto de ver as pessoas dançando. As pessoas ficam juntas mesmo. Acontece alguma coisa lá dentro, no salão. Porque são pessoas tão estranhas quanto aquelas que a gente tenta evitar contato na rua. Que a gente se esforça pra não esbarrar na correria. Mas lá os estranhos se olham nos olhos. Se convidam pra um bolero. Ficam com o corpo colado a música inteira. O mais bonito é quando os rostos se encostam.
(Ela dormiu. Dormiu, toda torta em cima da mesa. Devia ser um porre daqueles. Amanhã ela vai acordar sem lembrar do que o Jonas disse e com uma ressaca dos infernos)
- Faz três meses que eu só tenho contato com os meus livros. É engraçado que o meu primeiro contato com pessoas depois desse tempo todo tenha sido assim. Agora eu voltei pra casa e algo me incomodou muito. Essas coisas todas... meus livros... meus cds... meu copo de leite, pela metade, tudo, tudo. Tudo exatamente onde eu deixei.
Querida Odete;
Gostaria de dizer que agora sou a nova proprietária do exemplar de "O Pequeno Príncipe" que um dia você presenteou sua "altamente" estimada amiga Alta. Você sabe, sob alguma pressão de algumas pessoas queridas, eu finalmente adquiri o livro num desses sebos da cidade. Confesso que me senti um pouco constrangida de ler esse clássico agora pela primeira vez, aos 28 anos. Hoje é um tanto mais difícil, afinal, tornei-me alvo de um julgamento fácil: o livro carrega o residual de toda Miss, e além disso, como costumo ler no ônibus, creio o quanto inspira piadas a imagem de um adulto sentado num banco alto, lendo livros com figuras aquareladas. Mas a verdade é que os meus planos de lê-lo confinada no meu quarto foram completamente frustados. A dedicatória do autor logo acendeu uma luzinha dentro da alma, e o livro, antes que eu pudesse ter qualquer controle, enfiou-se na minha bolsa, desejando acompanhar-me, desejando ser lido, mesmo sob o olhar de desaprovação dos outros passageiros.
A sua dedicatória à amiga "Alta" também merece alguma atenção. Eu não sou fã de trocadilhos e honestamente, não me agradou muito o duplo sentido empregado com o nome "Alta". Mas você me ganhou por um pequeno detalhe. A delicadeza das linhas diagonais a lápis, construídas para apoiar sua mensagem a caneta, retinha e caprichada, exatamente como devem ser escritas dedicatórias em contracapas de livros tão especiais. É por causa das suas tênues linhas traçadas a lápis que quero te pedir perdão por esse livro agora pertencer a mim, e não mais à estimada Alta. Perdoe-a, ou sua família, por ter dado longa vida à esse livro fabuloso, e dê-lhes algum crédito por este livro ter chegado às minhas mãos em tão bom estado. Eu prometo, em compensação, ter mais atenção ao número de pôr-do-sóis assistidos que aos números que indicam peso, idade e o orçamento no fim do mês. Prometo desenhar uma estante onde guardar esse livro com segurança, longe de baobás e espinhos. Uma estante iluminada com luzinhas coloridas. As luzes do natal de 1976.
Se apaixonar pela segunda vez por alguém talvez seja mais raro que amar alguém por toda uma vida, e por isso mesmo, mais fantástico. Quando você olha os mesmos olhos e sente o mesmo cheiro e ri das mesmas coisas de antes e ainda assim, descobre uma nova magia em tudo isso, você se sente mais premiado que da primeira vez.
Apaixonar-se pela primeira vez por alguém é quase um engano. Você está anestesiada por coisas que sempre encantam na primeira conversa, no primeiro café compartilhado, no primeiro beijo. Quando você se apaixona de novo por essa mesma pessoa, tudo é mais honesto. A pessoa deixa de ser um mito e se torna um ser humano com falhas, cáries e bafo matinal.
Quando você se apaixona pela segunda vez pela mesma pessoa, você olha com carinho pra sua celulite. Aceita que nunca vai ter o nariz que desejava. Acorda e se observa, achando graça das próprias olheiras, da bagunça insondável que se tornou o seu cabelo, e também passa a achar isso tudo muito bonito e verdadeiro. É um refil de esperanças, já que todo sentimento é frágil e pode morrer de um dia pro outro, inexplicavelmente.
Mas o encantamento renovado por uma mesma pessoa te faz acreditar que as coisas podem mesmo durar, que a vida pode ser boa e que pelo menos em um momento dela, é muito possível mandar um enorme foda-se para a psicologia evolucionista, Charles Darwin e todos os pesquisadores infelizes de institutos britânicos.
Existe muita maldade no mundo. Muita mesmo. Mas nada se compara à crueldade das pessoas que criam zípers nas costas de uma blusa. Desses que nunca se pode fechar sem a ajuda de uma outra pessoa. A gente aprende a apreciar as vantagens de ir ao cinema sozinha (como sempre achar um bom lugar pra uma pessoa, mesmo quando o filme já está pra começar). E aprende a sempre ter um amigo gay que nos divirta em programas em que geralmente só vão casais. Mas não se pode escapar da imensurável agonia de não conseguir fechar um zíper. É tão fácil disfarçar nas outras situações... mas na solidão do seu quarto, enfrentando uma blusa malignamente concebida, fica ainda mais claro que falta uma metade de você.
- Será que Deus nos enfiou numa espécie de blind date?
- Teoricamente, todos os encontros que Deus arranja são blind dates.
- Quantos blind dates Deus deve estar realizando agora?
- Seiscentos mil, duzentos e quarenta e oito... nove... and still counting.
Ela odeia café. Mas aceita o café oferecido pelo chefe que nunca amou. Então não faz diferença se ele continua amargo ou não. O café, não o chefe que oferece o café. Ele se parece muito com esse café, ela pensa. De qualquer forma, toma um gole e compartilha com os colegas uma careta. Fica feliz pelo tapinha nas costas do moço bonito. Foge a tempo do contato indesejado do moço que cheira mal. Ela não entende como puderam reunir numa mesma empresa dois funcionários que representam com perfeição o fundamento dos elementos inversamente proporcionais. Ela só ouvira esses termos no ginásio, quando as pessoas da sua idade ainda chamavam ensino fundamental de ginásio.
O moço bonito não é só bonito. É um escândalo de beleza, charme e inteligência. E tem uma bunda incrível. O moço que cheira mal não é só mal cheiroso. Ele ri das próprias piadas machistas e já foi apanhado batendo punheta durante o expediente uma par de vezes. Essa é toda a equipe. Ela tenta ser produtiva e imagina que se todas as virtudes do moço bonito fossem divididas com o moço que cheira mal, o moço bonito não sairia no prejuízo. Metade dele já era bom demais e a outra metade já transformaria a ameba mal cheirosa num gentleman esculpido por Michelangelo.
A sua repulsa pelo moço mal cheiroso é diretamente proporcional à sua atração pelo moço bonito. A sua culpa por detestar tanto o moço mal cheiroso é o resultado da sua repulsa elevada à quarta potência. O seu esforço diário em criar situações que provoquem qualquer tipo de contato físico com o moço bonito cresce em projeção geométrica. Todos os dias ela vai pra casa e tenta se concentrar no fato de que o moço que cheira mal nunca a destratou. Pelo contrário, sempre é muito gentil e procura sempre cumprimentá-la com a mão que não usa para coçar o saco. Tenta lembrar-se disso sempre antes de dormir, mas o desejo de não dividir o mesmo ambiente que ele no dia seguinte lhe escapa por um instante, antes de adormecer.
Na manhã seguinte, desperta chorando copiosamente. Acaba de sonhar que o moço que cheira mal morrera de uma forma indescritivelmente trágica. Sente-se profundamente culpada pelos seus sentimentos de aversão e por uma fração de segundos, assiste nascer dentro de si uma afeição pelo moço repugnante. Deseja chegar no escritório e enlaçá-lo num abraço que dure 10 segundos (ou tanto tempo quanto puder prender a respiração) e contar-lhe do sonho terrível, relatar o alívio de saber que estava bem, que sua vida tinha brilho, magia e importância para os demais.
Com os olhos ainda marejados, desvia do chefe e do café amargos, e está diante do moço, mais bonito do que nunca, e do outro moço, mal cheiroso como sempre. Eles percebem sua expressão abatida, aguardando instruções de como proceder no caso dela precisar de algum apoio. Comovidos, o moço bonito mostra um sorriso afetuoso e o moço que cheira mal desaloja o dedo da narina esquerda. Ela observa os dois cuidadosamente. Conta sobre o sonho. Enxuga algumas lágrimas. Relata seu alívio. Declara seu carinho com palavras surpreendentemente doces. E então abraça por mais de 30 segundos o moço bonito.
- Há alguns dias eu vejo coisas lá fora, na janela. Das primeiras vezes, penso que é uma estrela cadente, e me apresso em pensar num pedido. Quando estou me preparando pra pedir que você esteja aquí, percebo que é só o vizinho do andar de cima jogando uma ponta de cigarro acesa de sua janela. Se eu fizer um pedido pra uma ponta de cigarro, o quanto meu pedido pode ser atendido? 10% dele?
- 8,9%, segundo Nostradamus.
- Ok. É a porcentagem que temos agora, ao telefone. Realmente funciona!
Eu sei que esse não era o acordo, mas o que é a amizade a dois centímetros de um beijo?
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