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Ela resolveu enfiar o dedo na ferida e decidiu ir sozinha ao cinema no dia dos namorados. Escolheu um filme que tem sido exibido desde 2007, sobre pessoas solitárias com problemas de relacionamento, naturalmente.
É a primeira sessão da tarde e, para seu alívio, ainda há poucos casais no cinema. Acomodou-se desconfortavalmente, deslizando o próprio corpo na poltrona, de forma que não fosse possível ser enxergada pelos casais da sala. E então, a uma poltrona de distância, o improvável. Usando os mesmos métodos de distanciamento do campo de visão alheio, estava um rapaz. Ele segurava com dificuldade uma pipoca tamanho combo especial de dia dos namorados. Era um desafio comer aquilo sozinho. A garota do caixa também tentara (com aquele entusiasmo monofônico) persuadí-la a levar a pipoca combo especial do dia dos namorados por um preço reduzido. E também tentara convencê-la a levar o tamanho grande do refrigerante diet. Ela sabia que a pipoca tamanho combo especial de dia dos namorados era o maior atestado de sua solidão. E que era necessário estar muito deprimido pra pedir um refrigerante grande para se beber sozinho, mesmo que fosse diet.
Observando o rapaz de rabo de olho, ela imaginou que já devia ter suspeitado que ir sozinha ao cinema no dia dos namorados era a melhor forma de encontrar alguém tão solitário quanto ela. Geralmente, buscar alguém por outros meios é como tentar achar uma agulha no palheiro. Mas nesse caso, ele era uma vela acesa no escuro. Uma bela vela, digna de admiração.
E aconteceu, que ali no meio dos trailers e dos beijos incovenientemente sonoros, um outro ruído atraiu a sua atenção: o rapaz se engasgara com uma pipoca e tossia vigorosamente. Foi o necessário pra que ela eliminasse o assento de distância e oferecesse um gole do seu refrigerante pequeno diet. E aquela pipoca tamanho combo especial de dia dos namorados finalmente cumpriu sua missão de servir dois, e não um só.
Tomaz flagrou 3 lágrimas perto do mouse. Apressou-se a enxugá-las da mesa e ela pensou que era exatamente esse o problema. As lágrimas umedecendo a mesa, emudecendo Angélica, e aquele cara fazendo merda.
Nem desconfiavam que ambos sentiam-se sigilosamente miseráveis pelos mesmos motivos. Além disso, o sábado seria ainda longo, entediante, trabalhoso e não-remunerado. Angélica olhou lá fora e achou muito irônico que as janelas da agência tivessem grades. Tomaz leu novamente seu roteiro sobre "o probiótico que te faz aproveitar melhor os pequenos prazeres da vida". Invocou a sensação de aproveitar os prazeres da vida, certamente de alguma vida que não era a sua. E então as grades na janela começaram a fazer todo o sentido. Era o mundo lá fora se protegendo de gente que vende pequenos prazeres da vida. Em potes de iogurte que custam 75 centavos.
Tentando criar um ambiente menos nocivo, ele decidiu ligar o iTunes, desplugar os fones e compartilhar com ela um pouco de Elliot Smith. Ela decidiu fazer um café para mantê-los animados pra exaustiva tempestade de ideias que viria a seguir. Só havia os dois na agência e como já não era mais hora do almoço, mas hora de almoçar, acharam que podiam pedir pizza, sorvete e cervejas.
Na sala de reunião, fizeram uma exibição privada de "Peixe Grande", "O Fabuloso Destino" e "Viagem a Darjeeling" para colher referências. Terminaram o serviço, removeram as latas de cerveja como se removem corpos da cena de um crime e foram pra casa, descansar para o domingo sem descanso. Alcançaram suas casas e acomodaram, sincronizados, suas cabeças em seus respectivos travesseiros. Suspiraram tão profundamente quanto permitiam seus pulmões, lamentando por mais um fim de semana desperdiçado. Imaginaram o sábado que adorariam ter vivido com alguém com quem pudessem ouvir música, ver um bom filme. Alguém pra escolher o sabor da outra metade da pizza ou pra testar a mistura de cerveja e sorvete. Num sono perturbado, Tomaz despertou estapeando a própria testa. Era um sinal punitivo do próprio organismo, reprovando-o por ter secado a mesa e não o rosto dela. Como eu havia dito, eles nem desconfiavam.
Ela apareceu de salto alto, deixando bem claro que estava se vingando de algo que eu fiz. Deve ter sido por eu ter tirado a barba. Ela sabe muito bem o quanto me deixa mal parecer tão mais alta que eu. Sempre fui pequeno.... desde muito, pequeno. Segundo ela, foi justamente o que a fez se sentir atraída por mim. "Dá muito torcicolo beijar homem alto. Prefiro pequenininhos assim, como você". Em geral, eu me sentiria profundamente insultado pelo "pequenininho", mas como contrariar uma mulher bonita? Quando descobrir, ensine-me como.
De salto ela é três vezes mais nociva. "I'm over heels", ela gosta de dizer. Eu a corrijo "se diz head over heels". Ela ignora. A expressão e o erro que não se restringe só ao idioma.
Quando ela pergunta "Então vamos. Você não vai se trocar?" e eu digo encabulado "já estou trocado", eu procuro, sem muito entusiasmo, alguma câmera escondida. Mas ela insiste na sua maldade peculiar "ah, não tá não". E tudo o que eu posso fazer é obedecê-la. Não tenho escolha. Ela está de salto.
Me beijou e o sonho foi apagado em instantes. "O que eu te disse sobre essa língua? Menos língua, honey. Vamo deixar esse beijo menos agressivo, sim?" e conclui a lição introduzindo uma balinha de menta entre meus lábios semi-cerrados. "Tirar esse bafinho também, né?".
A danada não consegue ver um filme inteiro comigo. Dorme nos primeiros vinte minutos. Mas dorme nos meus braços. Vez ou outra abre o olho, diz coisas desconexas, exige um cafuné e volta a dormir. Mas não ronca. Mulheres de salto nunca roncam, aparentemente. Eu achava que era porque ela detestava clássicos. Mas ela diz que se é pra dormir num filme, que seja num clássico. É bom despertar com o rosto de uma diva na tela. Adormecer novamente e sonhar que é aquela diva em preto e branco.
Daí, como uma criança, ela desperta num susto, olha pra mim em silêncio e acredito que ela está reparando mais uma vez na ausência da minha barba. Me preparo para mais um instante de dolorosa franqueza e ela diz "Eu te amo tanto. Eu passaria minha vida inteira aqui." E adormece novamente, no meio de um beijo e um sorriso meu. E então, finalmente, como vale a pena suportar toda a honestidade que cabe nessa mulher!
Meu bem, hoje senti o seu cheiro. Eu estava tentando escolher um desses filmes de enredo fraco, algo que fizesse parecer que os meus roteiros são muito interessantes. O seu perfume bom vinha da seção de filmes adultos e usei todo meu (escasso) poder de interpretação para fingir interesse na capa de "Jorrada nas Estrelas". Guiada pelo aroma e um pouco de insanidade, descobri enfim o rapaz interessado na capa de "Pênis, o Penetrinha". Era ele. E ele, meu bem, era tão, mas tão obcenamente feio que, apoiada no fato de que o olfato é o mais mnemônico dos sentidos, eu devo suplicar: troque de perfume, por favor.
- É impressão minha ou tá rolando uma tensão sexual entre a gente?
- Acho que não é impressão não.
- Hummm... o que a gente faz?
- É, a solução seria dissipar isso, né...
- É, acho que é o mais sensato... rolar alguma coisa entre a gente pode prejudicar um pouco os nosso projetos... a gente já tem duas novas propostas...
- É, eu sei. Essa coisa de misturar trabalho e relacionamento...
- É, definitivamente...
- Não, não pode.
- É, não pode.
Silêncio.
- Mas também vai ficar difícil trabalhar assim, de qualquer jeito... a gente tá criando eletricidade aqui.
- Sem dúvida.
- Tem que ter uma solução, eu não quero deixar de trabalhar com você. A gente tem sintonia de trabalho.
- E criar com você é um sonho, sempre admirei suas idéias.
- Eu sinto a mesma coisa...
- Já sei, eu tenho a solução. Muito boa por sinal.
- Manda.
- A gente deve se beijar.
- Deve?
- Mas tem que haver um esforço pra ser o pior beijo possível. Você pode fazer isso?
- Bem, eu posso tentar.
- Vai funcionar, acredite. A gente encerra tudo com uma experiência ruim e pronto, acabou a tensão. Ninguém mais gasta energia pensando em sexo, o que você acha?
- Bem, na falta de melhor idéia...
- Bem, prepare-se...
- Claro.
- Lá vai.
Beijo.
- E aí?
- Nossa, você se esforçou mesmo, acho que funcionou.
- Quê?
- Não pensei que você fosse mesmo levar a sério, eu só queria te beijar, de verdade.
- Mas eu...
- Tudo bem, tudo resolvido agora. Qual a próxima pauta?
Eu sei que esse não era o acordo, mas o que é a amizade a dois centímetros de um beijo?
A vida não cansa de me dar rasteiras. E dessa vez foi especialmente diligente em ser imprevisível. A ponto de realizar, com riqueza de detalhes, exatamente o que eu desejei que acontecesse.
Criei um documento entitulado "Pedro diz". Trata-se exatamente disso. Pedro diz coisas lindas que merecem ser registradas e é criminosamente modesto demais para publicá-las no blog. À medida que a lista vai crescendo, eu imagino que se transforma num daqueles livrinhos de sabedoria. Desses que geralmente ficam no balcão de algum restaurante indiano. Enquanto você paga a conta, a simpática senhora no caixa a convence a abrir uma página. Você fica sem graça com a situação porque está sendo coagida a reanimar o fio de esperança necessário para investir nesse minuto, nesse bom presságio. Ela sorri, elucidativa, enquanto empurra o livrinho pra você, como se você não tivesse escolha já que a máquina do VISA ainda está ocupada. Você torce pra que não saiam frases do tipo "plante mais árvores". Há dias tão cinzas que tudo que você espera é que um livro desses te surpreenda com um "derrube duas árvores".
Ainda não há uma edição impressa de "Pedro diz". Na realidade, o documento não tem mais do que uma página. O documento também existe porque Pedro não está diuturnamente online. Então eu uso a mão do lado intuitivo para escolher uma frase. Fecho os olhos e a ponta do meu dedo direito pressiona alguns pixels na tela iluminada do Word. Abro os olhos e está lá. Uma frase mágica e a marca da minha digital engordurada no monitor.
"Tenho tantas saudades desse seu disco riscado", Pedro diz. E ainda assim, tão descontextualizado, faz minha alma iluminar-se.
Tá, eu aceito. Mas prometa que mesmo quando tivermos filhos, netos, labradores e conta conjunta, sempre que peguntarem, sua resposta continuará sendo a mesma: é minha namorada.
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