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E eis que entra pela porta traseira um homem nauseabundo e mal vestido, que debaixo de seus trapos, barba volumosa e mal cheirosa, surpreendentemente exibe o aspecto de um homem formoso, para aqueles que se atrevem a olhá-lo com diligência.
Distribui aos passageiros cartelas de adesivos metalizados e um papel amarelado com uma história xerocada. Desperta os adormecidos, incomoda os que se concentram em literatura, transita com dificuldade num ônibus lotado na 9 de Julho, deixando um pouco do seu fedor no colo dos assentados.
Apático e agitado, anexa aos impressos distribuídos um discurso monofônico. Estou com fome. É só um real. Mas qualquer coisa serve. Dez centavos pra comprar um pão. Só um pãozinho. Me ajudem. Tô com fome. Sabe o que é fome? Preciso comer. Qualquer coisa serve. Dez centavos. Vinte centavos. Segura aqui, eu já pego. Tenho fome, minha gente. Só quero comprar um pãozinho.
Apáticos e agitados, os passageiros continuam lendo os livros, as fofocas nos bancos elevados prosseguem, o olhar oblíquo através da janela permanece inalterado. No entanto, todos partilham o desconforto de segurar o papel imundo e a ansiedade de devolver o apelo do homem, que já retorna do seu percurso dentro do longo veículo.
Retorna escandalizado, com uma impaciência maturada. Xinga e arranca com agressividade os conjuntinhos adesivos das mãos dos passageiros. Vocês não têm coração. Um homem passando fome. Ninguém ajuda. Seus mesquinhos. Só pedi dez centavos. Tô com fome, seus malditos. Devolve essa merda.
E então, imobilizado pelo cenário burguês, cospe lá de trás uma só sentença que atrai quase todos os olhares para si. Já que ninguém se preocupa com nada além do próprio cu e eu ainda tenho fome, vou ser obrigado a roubar a bolsa ou a carteira de alguém, basta uma bolsa, basta uma carteira, deixo a critério de vocês escolher qual, vocês têm 1 minuto pra decidir. E como se ninguém pudesse crer em tamanha insolência, exibiu triunfante uma arma de fogo numa das mãos débeis.
A inquietação se transformou num silêncio funesto. Durou exatamente 15 segundos, até crescer num burburinho que se transformou num estrépito caótico. Começou com olhares orientados para as moças bem vestidas com suas bolsas estampadas e maquiagem à prova d´água, que por sua vez, esperavam o brio dos engravatados se manifestar, que por sua vez tinham os próprios pensamentos abafados pelas senhoras que não paravam de se lamentar, que tudo o que possuíam era o bilhete único, que eram tão miseráveis quanto o homem mal-cheiroso, que havia de ter um homem nobre para dar fim àquela agonia. O homem assiste satisfeito ao circo que ele próprio ergueu.
Do fundo do ônibus, uma jovem remove um dos fones do ouvido e chama o homem repugnante. Tira com tranqüilidade uma nota amassada de 1 real da bolsa, e para o espanto da platéia novamente silenciosa, pergunta com um sorriso franco, posso escolher os adesivos de borboleta?
Furioso e ofegante, o homem se precipita sobre a moça, extraindo de suas mãos as cartelas adesivas, esbravejando, não, não pode escolher, ou leva a que eu entreguei ou não leva nenhuma! E desce do ônibus, ganhando a rua com velocidade, apagando da memória os breves acontecimentos de minutos atrás.
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