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R.I.P. Duque

por the fazz, em 17.11.09

Mesmo que agora more num bairro mais tranquilo, não perdi o costume de ser muito atenta e desconfiada. Mas por um estranho motivo, eu abri a porta assim, sem cautela ou uso de algum aparato sofisticado como o olho mágico ou elegantérrimo "quem é". Portanto, o quão maior não foi meu espanto quando vi diante de mim essa mulher, cuja expressão borrada em rímel e lágrimas representava um perigo iminente.

- Então é você. Deixa eu olhar bem pra essa sua cara.

Continuei imóvel. Esperei que ela mesma prosseguisse e mostrasse algum objetivo na visita inesperada.

- Eu não entendo. Ele nunca gostou de morenas.

Compreendi sua ferida, e me manifestei com certa prudência:

- Mais um motivo pra eu me sentir lisonjeada.

- Que desgosto... você não é nada do que eu esperava...

- Você tá muito nervosa... entra, eu vou preparar um chá pra você. Errr... Lillian?

- Deus do Céu! Você conheceu a Lillian? - me encarou com humilhada resignação - Soraya! Eu sou a Soraya!

Ela permenceu 3.4 segundos em silêncio e descarregou um choro tão doloroso quanto obscenamente sonoro.

- Que patética! Eu nunca imaginei que faria esse papel ridículo. Sempre achei que eu fosse um pouco mais autêntica... é tão humilhante isso, ser só mais uma. Uma coadjuvante, uma figurante...

Enquanto ela se lamentava, eu tentava acomodá-la em uma cadeira. Eu compreendia aquela mulher e jamais poderia expulsá-la dali. Era uma visita fúnebre, aquela. Ela veria nossa foto na geladeira, reconheceria os vinis que já vira antes, sentiria novamente o cheiro que não mais lhe pertencia e perceberia que não fazia mais parte daquela história. Eu precisava ajudá-la a se despedir, sem julgamentos. Eu que já estivera naquele papel, precisava dar a chance que não me foi dada anos atrás.

- Eu te desejei as piores coisas quando soube da sua existência, sabia?

- Eu sei. Toma um gole.

- Água de Melissa?

- Não, vodka.

- Você sabe cozinhar?

- Nadinha.

- Gosta de chorinho?

- Sei lá, tem no Guitar Hero?

- Como vocês se conheceram?

- Internet.

Seus olhos ganharam o dobro do tamanho original.

- Orkut?

- Second Life.

Ela aliviou um grito abafado numa das almofadas. Ela sentia uma combinação de ojeriza e constrangimento de estar conversando comigo. Sabia que tinha muitos motivos e ao mesmo tempo, absolutamente nenhum para me odiar. Eu achei saudável e necessário que ela despejasse algum ódio em mim. Mas não cogitava, sob nenhuma hipótese, compartilhar essa idéia com ela. Ela poderia dirigir os piores impropérios, e eu permaneceria em silêncio. Simplesmente porque sabia que não havia maior insulto que o fato de eu carregar uma aliança na mão esquerda, e ela não.

Os seus soluços se aquietaram e depois de um longo suspiro, ela fez qualquer gesto com a cabeça que eu sei que quase significava um "obrigada". Conduziu seu copo vazio à pia. Eu pedi pra que não se importasse. Deu uma boa olhada em 360º e eu percebi que era enfim, sua despedida. Pousou os olhos um pouco mais demoradamente sobre as baquetas e se dirigiu à porta. Fez um último pedido:

- Por favor... você me deixa quebrar alguma coisa? Qualquer coisa. Eu quebro aqui do lado de fora, pra que você nem precise...

- Absolutamente! Pode descarregar sua mágoa aqui na sala mesmo - interrompi-a, enquanto alcançava-lhe o pato de louça, de cima da estante.

Ela me olhou, como se ainda procurasse mais amplo concedimento e arremessou, desajeitamente o pato, fazendo-o se partir, de forma não tão satisfatória pra sua ira, em diversos pedaços quase idênticos. Antes de derrubar uma última lágrima, disse um "adeus" mal ensaiado e pouco orgânico. Na sua saída, encarregou-se de fechar a porta, pra que eu não a visse se afastar.

Quatro horas mais tarde, Santiago chega em casa. Antes do beijo terno, surpreende-se com o que fora o pato que ele tanto estimara.

- O que houve com o presente da mamãe?

- Soraya, acredita? Ela esteve aqui.

Ele teve uma breve síncope. Mas retomou, corajosamente:

- Tudo bem com você? Foi só isso que ela fez? Como ela descobriu onde a gente mora? O que ela disse? Ela te machucou?

- Ela só queria saber como nos conhecemos. Se a gente era feliz.

- O que você respondeu?

- A verdade.

- E ela?

- Não botou muita fé. Arregalou o olho e ainda disse que pra você estar num curso de gastronomia, só podia ter um motivo: procurar um rabo de saia.

- Ah, típico...

- Bem, eu não me aguentei e disse que seu plano deu certo. Foi quando ela agarrou o Duque, e aí, já era tarde demais pra eu impedir qualquer desastre.

- Tudo bem, vem cá - me abraçou vigorosamente - já passou...

Ele olhou piedoso praquele pato horroroso. Balbuciou algo que eu me apressei em interromper.

- Meu bem... isso é algo que, definitivamente, não sou eu quem tem que limpar.

E não havia mais nada que me impedisse de botar a agulha num raro vinil do Cartola.

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publicado às 01:59


8 comentários

De Imcompreendida a 26.11.2009 às 01:22

Olá,

cheguei aqui através do blog do Lacerda... adorei o seu conto, muito legal mesmo... e como disse o Cochise gostaria de vê-lo num filme iria ficar muito legal.

Parabens!

um abraço,

De the fazz a 30.11.2009 às 02:37

Queridos;
Eu devo informar vocês que atualmente estou tendo aulas de roteiro para cinema. E os comentários de vocês foram fundamentais pra que eu transformasse , em um instante de de desespero, este post num roteiro (ou um exercício de). Segue os comentários do professor:
1- As personagens não têm qualquer transformação: elas entram e saem da mesa forma;
2- Não fica claro qual o confilto da história;
3- Não fica claro do que se trata o curta.

Obrigada por acompanhar o blog. Tomara que ele abasteça vossos corações, porque como roterista, percebi que sou um completo desastre. :P

De Imcompreendida a 30.11.2009 às 05:00

Oi querida,

gostaria de um e-mail pra conversa melhor com você... Mas, vou antecipar alguma coisa: Primeiro, a sua história é boa e bastante visual pra ser transformada em vídeo. O problema que pode ter acontecido com você é que a linguagem da literatura e do roteiro são bem diferentes, então deve-se ter algunas cuidados na hora da adaptação, como por exemplo(como falou o seu professor) desenvolver mais os personagens. Eu estudo audiovisual e pretendo ser roteirista profissional, assim se você quiser algumas dicas terei prazer em te ajudar, é só me mandar um e-mail. Se você quiser ser roteirista também, além de escritora tem que ler alguns livros e roteiros de filmes pra se apropriar da linguagem, era isso que seu professor deveria ter te dito ao invés de ser tão contudente em sua crítica, pelo menos é assm que eu acho, tenho certeza que o Felipe concondará comigo. Um abraço,

De cochise a 20.12.2009 às 16:36

1 - Por que a transformação é necessária?
É uma cena. Um instantâneo. Um retrato de polaroid de um pedaço do mundo. Não é uma história longa o bastante paraq caber uma tranformação.

2 - Não gosto de coisas auto evidentes.
O conflito está no limiar.
Nem toda obra precisa de um conflito. Pense nesse como um diálogo ao invés de um conflito.
É calro que uma história maior não se sustenta sem um ou dois conflitos, mas para um curta como esse de poucos minutos...
3 - O curta trata de perda. Trata de ódio. Trata de como os sentimentos são irracionais.
A nova mulher devia odiar soraia. Ao não odiá-la nos faz pensar sobre os motivos das emoções. Até que ponto são justas. Soraia precisa odiar a nova mulher para minimizar sua perda, sua dor, e meio incapaz de realmente odiá-la nos mostra um quase farrapo humano.

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