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Mesmo que agora more num bairro mais tranquilo, não perdi o costume de ser muito atenta e desconfiada. Mas por um estranho motivo, eu abri a porta assim, sem cautela ou uso de algum aparato sofisticado como o olho mágico ou elegantérrimo "quem é". Portanto, o quão maior não foi meu espanto quando vi diante de mim essa mulher, cuja expressão borrada em rímel e lágrimas representava um perigo iminente.
- Então é você. Deixa eu olhar bem pra essa sua cara.
Continuei imóvel. Esperei que ela mesma prosseguisse e mostrasse algum objetivo na visita inesperada.
- Eu não entendo. Ele nunca gostou de morenas.
Compreendi sua ferida, e me manifestei com certa prudência:
- Mais um motivo pra eu me sentir lisonjeada.
- Que desgosto... você não é nada do que eu esperava...
- Você tá muito nervosa... entra, eu vou preparar um chá pra você. Errr... Lillian?
- Deus do Céu! Você conheceu a Lillian? - me encarou com humilhada resignação - Soraya! Eu sou a Soraya!
Ela permenceu 3.4 segundos em silêncio e descarregou um choro tão doloroso quanto obscenamente sonoro.
- Que patética! Eu nunca imaginei que faria esse papel ridículo. Sempre achei que eu fosse um pouco mais autêntica... é tão humilhante isso, ser só mais uma. Uma coadjuvante, uma figurante...
Enquanto ela se lamentava, eu tentava acomodá-la em uma cadeira. Eu compreendia aquela mulher e jamais poderia expulsá-la dali. Era uma visita fúnebre, aquela. Ela veria nossa foto na geladeira, reconheceria os vinis que já vira antes, sentiria novamente o cheiro que não mais lhe pertencia e perceberia que não fazia mais parte daquela história. Eu precisava ajudá-la a se despedir, sem julgamentos. Eu que já estivera naquele papel, precisava dar a chance que não me foi dada anos atrás.
- Eu te desejei as piores coisas quando soube da sua existência, sabia?
- Eu sei. Toma um gole.
- Água de Melissa?
- Não, vodka.
- Você sabe cozinhar?
- Nadinha.
- Gosta de chorinho?
- Sei lá, tem no Guitar Hero?
- Como vocês se conheceram?
- Internet.
Seus olhos ganharam o dobro do tamanho original.
- Orkut?
- Second Life.
Ela aliviou um grito abafado numa das almofadas. Ela sentia uma combinação de ojeriza e constrangimento de estar conversando comigo. Sabia que tinha muitos motivos e ao mesmo tempo, absolutamente nenhum para me odiar. Eu achei saudável e necessário que ela despejasse algum ódio em mim. Mas não cogitava, sob nenhuma hipótese, compartilhar essa idéia com ela. Ela poderia dirigir os piores impropérios, e eu permaneceria em silêncio. Simplesmente porque sabia que não havia maior insulto que o fato de eu carregar uma aliança na mão esquerda, e ela não.
Os seus soluços se aquietaram e depois de um longo suspiro, ela fez qualquer gesto com a cabeça que eu sei que quase significava um "obrigada". Conduziu seu copo vazio à pia. Eu pedi pra que não se importasse. Deu uma boa olhada em 360º e eu percebi que era enfim, sua despedida. Pousou os olhos um pouco mais demoradamente sobre as baquetas e se dirigiu à porta. Fez um último pedido:
- Por favor... você me deixa quebrar alguma coisa? Qualquer coisa. Eu quebro aqui do lado de fora, pra que você nem precise...
- Absolutamente! Pode descarregar sua mágoa aqui na sala mesmo - interrompi-a, enquanto alcançava-lhe o pato de louça, de cima da estante.
Ela me olhou, como se ainda procurasse mais amplo concedimento e arremessou, desajeitamente o pato, fazendo-o se partir, de forma não tão satisfatória pra sua ira, em diversos pedaços quase idênticos. Antes de derrubar uma última lágrima, disse um "adeus" mal ensaiado e pouco orgânico. Na sua saída, encarregou-se de fechar a porta, pra que eu não a visse se afastar.
Quatro horas mais tarde, Santiago chega em casa. Antes do beijo terno, surpreende-se com o que fora o pato que ele tanto estimara.
- O que houve com o presente da mamãe?
- Soraya, acredita? Ela esteve aqui.
Ele teve uma breve síncope. Mas retomou, corajosamente:
- Tudo bem com você? Foi só isso que ela fez? Como ela descobriu onde a gente mora? O que ela disse? Ela te machucou?
- Ela só queria saber como nos conhecemos. Se a gente era feliz.
- O que você respondeu?
- A verdade.
- E ela?
- Não botou muita fé. Arregalou o olho e ainda disse que pra você estar num curso de gastronomia, só podia ter um motivo: procurar um rabo de saia.
- Ah, típico...
- Bem, eu não me aguentei e disse que seu plano deu certo. Foi quando ela agarrou o Duque, e aí, já era tarde demais pra eu impedir qualquer desastre.
- Tudo bem, vem cá - me abraçou vigorosamente - já passou...
Ele olhou piedoso praquele pato horroroso. Balbuciou algo que eu me apressei em interromper.
- Meu bem... isso é algo que, definitivamente, não sou eu quem tem que limpar.
E não havia mais nada que me impedisse de botar a agulha num raro vinil do Cartola.
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