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- E então? Você topa ou não?
- Olha, é tentador, mas... acho melhor não.
- Mas como assim? E o discurso de minutos atrás do tipo “a vida é curta”, “a juventude voa”, “você é mesmo uma graça”?
- Eu não disse que você era uma graça.
- Não? Pensei ter ouvido isso...
- Você não vai me levar pra cama.
- Não foi o que eu propus.
- Mas é sempre assim. Começa com “a gente pode só dormir”, continua com “não vai acontecer nada que você não queira” e termina com a minha ansiedade pela ligação do dia seguinte que nunca vai acontecer.
- Eu sei que é difícil de acreditar, a gente só se conhece há 2 horas, mas eu juro que nunca senti o que eu tô sentindo agora por ninguém antes. Eu não quero só te usar essa noite!
- Viu só? É muito charme, inteligência e espírito numa pessoa só.
- E o que há de errado nisso?
- É o perfil de qualquer psicopata!
- Ah, por favor! Eu não sou psicopata! Pensa em como seria incrível contar pros nossos filhos de como você me conheceu. Que fomos movidos por uma paixão intensa, imediata e mútua. E que depois de um vinhozinho, você aceitou ver o sol nascer e tomar um café da manhã comigo numa linda varanda em Búzios.
- Mas e se der tudo errado?
- Como poderia dar errado?
- Sei lá, eu sempre me defendo de fazer coisas estúpidas, coisas que na hora parecem super atraentes, imaginando o jornal do dia seguinte.
- O que o jornal do dia seguinte diria disso?
- Sei lá... talvez “jovem é morto e esquartejado numa casa de praia afastada do Rio de Janeiro. Testemunhas afirmam ter visto uma mulher aliciando o jovem com bebidas e falsas promessas”.
Eles riem.
- Desculpe. Eu sei que você não é psicopata nem nada. Mas é um mundo cão, sabe como é...
- Nem toda mulher quer só um pouco de estrogênio pra manter a pele bonita. Às vezes a gente também quer um pouco de romantismo, não seja tão cético.
- Que sorte a minha. E você é linda. A mulher que eu sempre sonhei em passar o resto da minh...
- Ei, ei! Calma, eu disse “às vezes”. Agora mexa essa bunda, meu carro tá parado logo ali.
Português gesticulado é melhor que portunhol sem vergonha.
Eu sei a personalidade de uma pessoa analisando o que ela calça.
Frear um carro com o pé esquerdo não é boa ideia.
Só o Roberto pode empregar "lhe" nas suas canções.
Eu sei dar beijo que cura soluço.
Eu leio o futuro na borra de Nescau.
Eu sei de tudo isso. E eu sei de muita coisa.
Eu só nunca, nunca sei se o beijo do segundo encontro vai ser na boca ou no rosto.
Merda.
Ir ao banco é algo que ninguém além de Cíntia gosta de fazer. Tem gente que reflete sobre a vida durante um banho quente. Caminhando num parque. Dirigindo a 70 km/h. Cíntia reflete sobre a própria existência enquanto preenche envelopes de depósito bancário. Porque não há nada menos atraente que um ambiente de banco, e na primeira tentativa de fuga, até mesmo a sua vida é mais interessante que aquilo. Seu fluxo de pensamento é interrompido por uma voz familiar:
- Cíntia? Porra, quanto tempo!
Ela dá o melhor meio sorriso que consegue. Olha alternadamente pro chão e pras pessoas na fila preferencial.
- Pois é, né... tempão...
- Você cortou o cabelo! Ficou muito bom... muito bom... putz, agora lembrei que você deixou seu livro lá em casa, preciso te dev...
- Gema, você pode me fazer um favor? Hum?
- Claro, claro! Manda.
- Tá com celular aí? Liga num número pra mim, é bem rápido.
- Claro, pode falar.
- 99...
- Hum...
- 78...78...34.
- Tá chamando.
Os dois ouvem um ruído abafado de celular tocando muito próximo dali. Ele acha graça, até observá-la abrir a bolsa e perceber o toque cada vez mais cristalino. Inexpressiva, ela busca o celular no interior da própria bolsa. O display luminoso avisa que "GEMA está chamando". Ela pressiona o botão "desligar" e rejeita satisfeita a ligação.
- Obrigada, Gema. Só queria ter certeza que você não sofre de alguma dislexia, você provou que realmente tem habilidade pra fazer isso. Parabéns!
Ela vai em direção à saída, levando consigo, conformada e autoindulgente, um gordo maço de envelopes para depósito.
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