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- Edgard... você... você tirou a barba? O que deu em você?
- É... tirei... tirei e quero que você saiba que também vou cortar o cabelo.
- Não!
- Vou.
- Mas por que isso?
- Eu nunca mais vou usar Vans, entendeu?
- Eu fiz alguma coisa? Peraí, vamo conversar...
- Aquele perfume que você me deu... você nunca mais vai sentir esse cheiro em mim...
- Eu pensei que você gostava des...
- Nem as regatas listradas, nem as camisas xadrez. Vou cobrir minha tatuagem, usar lentes e abandonar os óculos... e você vai ter que aprender a aceitar... e gostar de mim assim. Exatamente assim. Com absolutamente nenhuma semelhança com o seu ex-namorado.
Meu bem, hoje senti o seu cheiro. Eu estava tentando escolher um desses filmes de enredo fraco, algo que fizesse parecer que os meus roteiros são muito interessantes. O seu perfume bom vinha da seção de filmes adultos e usei todo meu (escasso) poder de interpretação para fingir interesse na capa de "Jorrada nas Estrelas". Guiada pelo aroma e um pouco de insanidade, descobri enfim o rapaz interessado na capa de "Pênis, o Penetrinha". Era ele. E ele, meu bem, era tão, mas tão obcenamente feio que, apoiada no fato de que o olfato é o mais mnemônico dos sentidos, eu devo suplicar: troque de perfume, por favor.
- Maitê? Você tá aí?
(Uma voz abafada prova que há vida além da parede imunda)
- Jonas? Jonas! Eu já tava preocupada! Quase mandei o seu Elias arrebentar sua porta! Tava ouvindo música no fone de novo? Dormiu na banheira? Teve um ataque epilético?
- Não, não, nada disso. Banheira? Porra, tem banheira no teu apê? E a gente paga o mesmo condomínio?
- Jura que você não me ouviu te chamar?
- Eu não tava em casa. Acabei de chegar.
- Você saiu? Saiu de casa?
- Saí. Acabei de chegar.
- Mentira!
- Verdade.
- Mentira!
- Verdade mesmo. Posso te contar como foi...
- Mentira!
- ... ou podemos ficar a noite inteira nisso, você escolhe.
(Cara, ela ri a valer. E eu só uso "a valer" com sotaque do interior)
- Desculpa... é que já faz tanto tempo, né? Me assustei quando você não respondeu. Já me acostumei a ter você por perto. É como se tivesse sempre um homem em casa. Sem o incoveniente da tampa do banheiro levantada ou a toalha molhada em cima da cama.
- Ah, quer dizer que é só pra isso que eu sirvo? Utopia do homem perfeito?
(Agora os dois resolveram rir, mas por motivos diferentes. Ela até que achou ele meio esperto, e ele só riu de nervoso. Porque apesar de ter se sentido um pouco esperto por ter dito isso, depois se sentiu um completo idiota. Lembrou dos metidos que acham bonito usar a palavra "utopia" mas que sem a ajuda do Wikipedia jamais saberiam quem é Thomas More)
- Me conta das suas aventuras de hoje.
- Ah, eu preferi não me arriscar muito. Um passo de cada vez. Trinta e dois, pra ser mais preciso. Fui até essa casa de bailes da esquina.
- Você esteve lá? Jura mesmo? Eu também tava lá! Cheguei há uns vinte minutos.
(Silêncio. Mais longo pra ele que pra ela. A tal da teoria da relatividade explica isso. Vai lá ver no Wikipedia)
- Como você tava vestido?
(Ele olha pras próprias roupas. Está com um conjunto verde musgo que nunca viu um ferro na vida)
- Uma camisa amarela e calça bege.
(Mal gosto do cão)
- E você?
(A danada tá vestida de azul. Mas também vai dizer outra coisa)
- Um vestido vermelho.
(Ficam ali, quietinhos de novo, ensaiando mais coisas pra dizer)
- Talvez você tenha me tirado pra dançar.
- Como?
- Hoje no baile. Talvez a gente tenha dançado junto e não saiba.
- Eu não sei dançar, nunca tive jeito. Mas gosto de ver as pessoas dançando. As pessoas ficam juntas mesmo. Acontece alguma coisa lá dentro, no salão. Porque são pessoas tão estranhas quanto aquelas que a gente tenta evitar contato na rua. Que a gente se esforça pra não esbarrar na correria. Mas lá os estranhos se olham nos olhos. Se convidam pra um bolero. Ficam com o corpo colado a música inteira. O mais bonito é quando os rostos se encostam.
(Ela dormiu. Dormiu, toda torta em cima da mesa. Devia ser um porre daqueles. Amanhã ela vai acordar sem lembrar do que o Jonas disse e com uma ressaca dos infernos)
- Faz três meses que eu só tenho contato com os meus livros. É engraçado que o meu primeiro contato com pessoas depois desse tempo todo tenha sido assim. Agora eu voltei pra casa e algo me incomodou muito. Essas coisas todas... meus livros... meus cds... meu copo de leite, pela metade, tudo, tudo. Tudo exatamente onde eu deixei.
- Alô? Vinícius?
- Oi?
- Isabel, tudo bem?
- ... oooooi, Isabel...
- Pode falar?
- Posso, posso...
- Eu sei que você não ia ligar, então liguei eu.
- Magina, Isab...
- Mas se eu fosse você, eu também não ligaria. Eu sei que não causei lá aquele impacto ontem à noite. Por isso acho que você deveria me dar outra oportunidade. Eu preciso provar que eu não sou só uma garota que abre um sorriso fácil depois de três drinks coloridos de vodka. E se é essa a impressão que você tem, você está completamente enganado. E eu não posso permitir que um homem seja tão bonito e tão enganado. É pecado.
Ele ri.
- É mesmo? E o que eu deveria saber sobre a Isabel que eu não conheci ontem?
- Bem, pra começar, ela gostou de você. E isso já não se deve ignorar. Ela gosta de um monte de bandas legais, mas admite pra poucas pessoas que adora ouvir Roxette de vez em quando. Se um dia você souber disso, é porque é de confiança.
- Ace of Base. Só ouço no K7, assim nenhum registro de last.fm me denuncia.
- Viu só? A gente precisa se ver de novo. Sabe quando você entra numa loja e o funcionário te convence a olhar melhor a mercadoria sem compromisso? Pensa que é quase isso. Na pior das hipóteses, será uma tarde bem gasta tomando uma cerveja e ouvindo sucessos de Roxette e Ace of Base.
- É, isso nunca poderia ser ruim.
- Claro que não. E de papo, acredite, eu sou muito boa. Posso falar de teoria do caos e cocô com o mesmo entusiasmo. Eu ainda sei o truque de fazer a moeda sumir, estralo o maxilar, imito pelo menos 3 personalidades. Não tem como você ficar entendiado, eu juro, você não tem nada a perder.
Ele ri. Escolhe as palavras.
- Que coisa louca, isso. Louca e boa, na verdade.
- Se é boa, justifica toda a loucura. Eu acho.
- Isabel... por favor, diga que pode me encontrar ainda hoje.
Silêncio.
- Ahn? Hoje?
- É, quanto antes melhor. Você me deixou ansioso pra te ver de novo.
- Hummm... ansioso? Por que?
- Como por que, Isabel, você convence qualquer homem do que quiser. Eu mesmo, pra minha surpresa, tô morrendo de vontade de te ver. AGORA.
- Pra sua "surpresa"?
- Não... espera, não entenda nada errado... é só que realmente, achei que ia ser só um lance de balada, mas você está certa, eu realmente a subestimei... pode até ser precipitado, mas eu estou quase convencido de que você é tudo o que eu procurei a minha vid...
- Peraí, rapazinho... você tá querendo dizer que eu te ganhei pela insistência, é isso? Que eu não sou tão atraente e preciso de argumentos pra conquistar as pessoas? É isso?
- Você tá louca? Eu não disse nada disso, eu só sei que agora...
- Pois fique sabendo que eu sei me colocar no meu lugar, que eu sei bem que química não é algo que se pega no tranco.
- Isabel, você bebeu? Do que voc...
- Olha aqui, Vinícius, se você não soube dar valor quando teve a oportunidade, sinto muito. Eu sou uma mulher fantástica que não precisa correr atrás de homem nenhum, muito menos ficar adulando marmanjo pra um encontrozinho. Fique aí, regulando essa mixaria.
Mudo.
Vinícius, não o telefone.
* título livremente chupado de Felipe Lacerda.
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