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Chega à oficina, trôpega, agitada, com pouca habilidade em manusear sacola, casaco, bolsa e celular. Desce do carro e se dirige ao rapaz de azul.
- Oi, bom dia, preciso muito da sua ajuda... O meu carro... tá fazendo um barulho tão, tão esquisito...
Ele a observa. Dedica uma olhadela relâmpago sobre o carro. Havia certamente doze sorrisos disponíveis para a ocasião, mas ele escolhe usar o seu melhor e mais honesto.
- Como é o barulho, senhora?
- É uma espécie de rouquidão... um ruído engasgado. Linear, mas quebrado... em soluços, sabe?
- Dá pra imitar o ruído, pra eu tentar entender melhor?
(Ela fica encabulada. Tinha feito um grande esforço em descrever com precisão o ruído do veículo. Provavelmente ensaiara em casa qual a melhor forma de explicar o problema. Consultou as melhores coisas que o idioma podia oferecer, mas não achou necessário explorar onomatopéias. Essa coisa de imitar ruídos é tão constrangedora quanto ir ao consultório e ser obrigada a responder à pergunta "E o cocô? Como está?")
- Bem... é quase um... "rururrrrr tru tru"... sempre que eu freio, sabe?
Ele não esconde o riso e ela fica visivelmente corada.
- Como é mesmo o barulho?
- É um pouco mais rouco que isso... algo como um "trruu tre ruuurrrc"... eu... não sei bem... meu Deus, você está rindo mesmo de mim...
Ela deixa escapar um riso fácil e constrangido. Ele a interrompe, num amparo.
- Não fique envergonhada, por favor. Você foi muito bem. É uma ótima simulação.
- Ah, claro... muito boa, imagino... boa pra arrancar boas risadas! Olha só pra você, até desisitiu da diplomacia e já está rindo sem controle... (Ela também ri. Não só de si mesma, mas porque nota que ele ri silenciosamente. Daqueles que explodem em expressões, mas o riso mesmo é algo discreto, quase inaudível.)
- Desculpe, moça, por favor, não ache que sou indelicado...
- Não, claro que não! É realmente uma situação engraçada...
- A senhora patinou sobre um bloco de gelo?
- Como?
- O carro... deve estar fazendo esse barulho por causa disso. Freadas bruscas sobre um bloco de gelo - completa sério.
- Como é que é? Onde você acha que eu encontraria um bloco de gelo?
- Alguns lagos congelam em baixíssima temperatura. É bem fácil dirigir sobre eles nessas condições. Deve ter sido tenso. Muito mágico também, claro.
Ela fica desconcertada. Mas entra no jogo do rapaz.
- Bem, agora que você mencionou, sim, eu me lembro de ter dirigido sobre um lago congelado em Recife.
- Não, moça, não há lagos congelados por lá. Você deve ter confundido com um gêiser. Se bem que, se fosse um gêiser, o barulho seria mais um "rooaaar varsh varsh" do que o que você fez.
Eles riem. Ela tenta retomar a seriedade do assunto.
- De qualquer forma, acho melhor você olhar o motor. Eu posso ligar o carro e você mesmo pode me dizer se foi um lago congelado ou um gêiser.
- Não posso, dona... desculpe, como se chama?
- Simone.
- Pois bem, Simone ("lindo nome", ele acrescenta para si mesmo), infelizmente não posso ver seu carro.
Ela respira fundo e pergunta, intrigada:
- Por que o senhor não pode ver meu carro?
- Eu não trabalho aqui, senhora. Só estou esperando o balanceamento do meu carro. Melhor pedir pra um dos mecânicos - e repete o mesmo sorriso descrito lá em cima.
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