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- Eu sei que ninguém passa uma vida inteira sem mudar a personalidade, os hábitos, o corte de cabelo. Acho até muito saudável. Eu não conseguiria admirar alguém que não consegue acompanhar o tempo, ter uma visão sempre fresca das coisas. Mas há uma coisa que eu espero que nunca mude em você. Eu piraria se um dia você se transformasse numa mulher séria, que não vê mais graça em tomar banho de mangueira ou escorregar de meia no chão encerado.
Ela o observa, com um sorriso deslumbrado. Ele sorri de volta e segura sua mão, com uma pergunta ansiosa:
- E você? Existe algo que você jamais aceitaria que eu me tornasse?
- Uma coisa só.
- O quê?
- Um ex.
Cena típica de espera no estacionamento de um shopping. Ciclos de evolução depois, uma senhora retira seu veículo próximo a mim e, num piscar de olhos, surge uma criatura desavisada se alojando na vaga por direito minha. Respiro fundo e me dirijo à ladra de vaga, explicando que eu envelheci aguardando ali. A mulher poupa sua ruga de preocupação e tamanha é a sua indiferença que por pouco não é capaz de me atravessar, como se eu fosse um elemento transponível.
Num ato involuntário, agarro seu braço e tenho alguns décimos de segundo (antes que ela se vire, furiosa com minha ousadia) para tentar pensar em como fazê-la sentir-se arrependida de não ter encarnado como uma bactéria nessa vida. Para cada ficha de insulto disponível na minha memória, um erro de cálculo se apresenta simultaneamente:
a) Xingar um parente (e as pobres mães sempre figuram o topo da cadeia de insultos indiretos) é equivocado, injusto e não atinge o alvo em questão. “Filha disto” ou “filha daquilo” certamente a irritaria, mas os danos não atingem quem pisou no meu calo, portanto, nada satisfatório.
b) Eliminando laços hereditários, o que me resta é dirigir minha ira diretamente à motorista com total falta de etiqueta. Em outras palavras, esquecer o “filha de” e ir direto à parte terapêutica da ofensa. Mas também não é eficiente. Bem como associá-la a animais que geralmente têm má reputação no desempenho sócio-sexual. São ofensas vagas que mostram apenas meu desespero em expôr minha fúria e meus recursos apelativos adquiridos na quinta-série.
c) Expôr racionalmente o quanto ela desobedeceu as regras que ninguém sabe quem inventou mas todo mundo respeita por osmose, teria o mesmo efeito de dizer o quanto ela era boba e cara de ameixa.
Então opto, com intenções genuinamente malignas e vingativas, por atingir o calcanhar de Aquiles de toda mulher. Escolho ferir impiedosamente sua vaidade. Sem alterar a voz, sem apelar pra vulgaridade e com danos imensuráveis, para o meu deleite.
-Tomara que a sua pressa seja pra arrumar esse cabelo.
Olha, funcionou.
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