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Ela odeia café. Mas aceita o café oferecido pelo chefe que nunca amou. Então não faz diferença se ele continua amargo ou não. O café, não o chefe que oferece o café. Ele se parece muito com esse café, ela pensa. De qualquer forma, toma um gole e compartilha com os colegas uma careta. Fica feliz pelo tapinha nas costas do moço bonito. Foge a tempo do contato indesejado do moço que cheira mal. Ela não entende como puderam reunir numa mesma empresa dois funcionários que representam com perfeição o fundamento dos elementos inversamente proporcionais. Ela só ouvira esses termos no ginásio, quando as pessoas da sua idade ainda chamavam ensino fundamental de ginásio.
O moço bonito não é só bonito. É um escândalo de beleza, charme e inteligência. E tem uma bunda incrível. O moço que cheira mal não é só mal cheiroso. Ele ri das próprias piadas machistas e já foi apanhado batendo punheta durante o expediente uma par de vezes. Essa é toda a equipe. Ela tenta ser produtiva e imagina que se todas as virtudes do moço bonito fossem divididas com o moço que cheira mal, o moço bonito não sairia no prejuízo. Metade dele já era bom demais e a outra metade já transformaria a ameba mal cheirosa num gentleman esculpido por Michelangelo.
A sua repulsa pelo moço mal cheiroso é diretamente proporcional à sua atração pelo moço bonito. A sua culpa por detestar tanto o moço mal cheiroso é o resultado da sua repulsa elevada à quarta potência. O seu esforço diário em criar situações que provoquem qualquer tipo de contato físico com o moço bonito cresce em projeção geométrica. Todos os dias ela vai pra casa e tenta se concentrar no fato de que o moço que cheira mal nunca a destratou. Pelo contrário, sempre é muito gentil e procura sempre cumprimentá-la com a mão que não usa para coçar o saco. Tenta lembrar-se disso sempre antes de dormir, mas o desejo de não dividir o mesmo ambiente que ele no dia seguinte lhe escapa por um instante, antes de adormecer.
Na manhã seguinte, desperta chorando copiosamente. Acaba de sonhar que o moço que cheira mal morrera de uma forma indescritivelmente trágica. Sente-se profundamente culpada pelos seus sentimentos de aversão e por uma fração de segundos, assiste nascer dentro de si uma afeição pelo moço repugnante. Deseja chegar no escritório e enlaçá-lo num abraço que dure 10 segundos (ou tanto tempo quanto puder prender a respiração) e contar-lhe do sonho terrível, relatar o alívio de saber que estava bem, que sua vida tinha brilho, magia e importância para os demais.
Com os olhos ainda marejados, desvia do chefe e do café amargos, e está diante do moço, mais bonito do que nunca, e do outro moço, mal cheiroso como sempre. Eles percebem sua expressão abatida, aguardando instruções de como proceder no caso dela precisar de algum apoio. Comovidos, o moço bonito mostra um sorriso afetuoso e o moço que cheira mal desaloja o dedo da narina esquerda. Ela observa os dois cuidadosamente. Conta sobre o sonho. Enxuga algumas lágrimas. Relata seu alívio. Declara seu carinho com palavras surpreendentemente doces. E então abraça por mais de 30 segundos o moço bonito.
- Há alguns dias eu vejo coisas lá fora, na janela. Das primeiras vezes, penso que é uma estrela cadente, e me apresso em pensar num pedido. Quando estou me preparando pra pedir que você esteja aquí, percebo que é só o vizinho do andar de cima jogando uma ponta de cigarro acesa de sua janela. Se eu fizer um pedido pra uma ponta de cigarro, o quanto meu pedido pode ser atendido? 10% dele?
- 8,9%, segundo Nostradamus.
- Ok. É a porcentagem que temos agora, ao telefone. Realmente funciona!
Que coisa insuportável vai ser esse dia sem você.
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