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Fiquei de longe, observando-a, tomando o devido cuidado pra que ela não percebesse. Tracei uma rota estratégica que fugisse do seu campo de visão. Atravessei a catraca do metrô e continuei espreitando de um lugar seguro. Apenas pra colher o luxo de detalhes que deixa escapar uma pessoa que espera ansiosamente por outra. Fiquei extasiado só de acompanhar seus olhos inquietos conferindo o relógio da estação, e depois fazendo diversos testes para descobrir de que lado a franja lhe caía melhor, e depois conferindo novamente o plano geral. Lutou contra a rigidez do corpo ansioso. Eu sabia que ela estava estudando posturas de uma pessoa relaxada, ensaiando mentalmente o desprendimento de quem responde "magina, acabei de chegar!" sem por um momento perceber que eu estava ali, esperando o momento perfeito pra me aproximar. E então completei a volta, me esgueirando por trás dos outros usuários do metrô, movi-me involuntariamente ao seu encontro. Eu estava inebriado. Acredite, o que me moveu até ali foi irrefreável. Abracei-a ternamente, beijando-lhe a nuca. Ela aceitou minhas carícias, pressionou meus braços em torno da sua cintura. Ainda estava sorrindo quando finalmente volveu o corpo pra mim. E então reconheceu que eu não era quem ela esperava, atingiu-me em cheio os colhões e gritou "tarado! socorro!" pela estação, deixando-me indefeso no chão emborrachado.
- Daí me diz se você não concorda comigo. É uma merda esse lance de que tudo que tem qualidade em arte deva ser tão ácido ou tão hermético. Eu tenho certeza de que, se os relacionamentos do Woody Allen dessem certo, os críticos achariam uma droga. Final feliz não é final feliz pra sempre. É uma edição, um fragmento de vida, não é? Então não me venham aplaudir a desgraça só porque é mais verossímil, porque isso também é uma mentira. A vida continua e o infeliz pode se dar bem na seqüência do filme que não vai existir. Não devia haver essa obrigação em deixar todo mundo que sai do cinema tão angustiado. Depois, quem disse que cinema tem que ter tanto compromisso com a realidade? Não era pra ser a fábrica de sonhos? Num dá pra fazer filme inteligente sobre relacionamentos que dão certo? Senhor dos Anéis pode ser uma mentira linda e amor não? Entende o que eu tô querendo dizer?
- Eu quero casar com você.
- Ai, tá vendo só? Você sempre com sua mania de desviar do assunto.
E foi bem assim, eu olhei pro recipiente, ele ficou ali imóvel como costumam ficar os objetos inanimados de inox, e eu decidi ousar. Pus um pedaço minúsculo de joelho de porco no meu prato. Era um exercício de abstração. Se eu não tivesse essa experiência, eu ficaria para sempre presa num período da infância, aquela em que nos deixamos sugestionar facilmente pelo nome estranho dos pratos ou pelas comidas de cor verde.
Tentei me convencer que era só mais uma etapa a vencer, ali naquele restaurante self-service. Com o tempo, eu aprendi a apreciar cebola, mostarda, culinária japonesa e noticiário na TV. Foram passos gigantescos que me trouxeram à fase adulta. Não era um prato alemão de nome esquisito que ia me impedir de avançar. Afinal, pensei comigo mesma, muitos momentos da minha vida foram dedicados a comer porco. Eu adoro o sabor do bichinho. Tudo o que ele pode oferecer. Lingüiça, bacon, torresmo, pernil... NÃO HAVIA UMA SÓ COISA QUE EU NÃO GOSTASSE DELE e dizer isso em caixa alta é de certa forma libertador, porque quem gosta de porco, gosta com culpa. Pelo menos eu cresci numa geração em que é quase feio admitir o quanto se gosta de porco. Afinal, é sujo, não é? Hoje não é mais, ninguém cria mais porco na lama, mas na minha infância, a imagem da carne de porco sempre esteve associada a muitos litros de água escaldante. Comer porco fora de casa era um atestado de suicídio. Porco lembra impureza. Lembra aula de biologia. Lembra zoonose. Lembra proibição judaica. Acho que é por isso que ainda hoje eu me sinto vigiada quando boto uma bistequinha no prato. Alguém deve estar me julgando em silêncio.
Restaurante self-service tem dessas. Se você não põe nada de salada, é porque tem paladar infantil. Se põe só salada, é uma neurótica com mania de dieta (que provavelmente vai compensar a ausência do pastelzinho com uma torta mousse ultra-calórica de sobremesa). Se põe muita fritura, é uma inconseqüente de maus hábitos. Se escolher massa, alguém vai conferir seu prato e a sua silhueta, alternadamente. E vai me dizer que você nunca olhou com maus olhos um obeso almoçando no Mc Donald’s? Nem nunca torceu o nariz pra patricinha que repete como um mantra a frase “só um pedacinho, bem pequeno” pra qualquer pessoa que for lhe servir alguma coisa?
Pois bem. Hoje deveria ser um dia de novas experiências. De novos desafios. De pouco se foder com o que os outros acham do seu prato. Até o salsichão ajudou a compor a refeição. E salsichão também é polêmico. Não se come salsichão na presença de adolescentes, por exemplo. Se eles não fizerem uma piada pejorativa, podem entrar em combustão espontânea. Fora todo o residual negativo de qualquer salsicha. Nenhum outro alimento tem pior reputação. Já foram comparadas até mesmo à política e todo mundo diz ter conhecido uma fábrica de salsichas de perto. Mas eu não estou falando de salsichas. Estou falando do joelho de porco. Esse pedaço que também faz parte do animalzinho que eu sempre achei saboroso. Por que então parecia tão pitoresco? Por Deus, é igualmente perturbador comer outras partes do seu corpo! Na verdade só é mais fácil nas outras situações porque alguém foi esperto o suficiente pra fazer todo o resto parecer comida, não seres vivos. Alcatra, picanha, filet mignon. Mas nunca bochecha de vaca, bunda de boi, barriga de porco. Eu tenho joelhos. Eles não parecem apetitosos. Mas joelho é só mais um pedaço que os alemães decidiram implementar na dieta e a maioria deles parece bem satisfeito. Até deixaram o resto mundo associar o prato à sua cultura, não é mesmo?
Racionalizei tanto em cima do mísero pedaço de carne que nem achei que teria mais problemas com a palavra “joelho”. Mas como ela me incomodava! Tentei convencer-me que, assim como tudo que se prova pela primeira vez destemidamente, uma vez na boca seria fácil superar todo o peso que a palavra “joelho” carrega, e eu poderia apreciar, encantada, o sabor ímpar daquela iguaria. Dirigi o garfo, estoicamente em direção à boca. E então me senti vencida pela potência inigualável da semântica. Eu posso garantir, minha gente, aquela porcaria tem MESMO gosto de joelho!
Eu tinha meu próximo encontro inteiramente planejado. Eu espalharia alguns livros do Bukowski e do Fante no sofá, e em cima da mesa, a filmografia do Wes Anderson. De forma a ambientar um despojamento, não uma bagunça generalizada. E se ele reconhecesse que as coisas estavam dispostas para impressioná-lo de alguma forma, ao menos que ele lembrasse que isso é uma referência woody-alleniana. Ia pegar super bem se ele lembrasse disso.
Eu o deixaria à vontade pra tomar um banho caso ele quisesse. Arranjaria uma toalha azul. Porque azul é de menino. Enquanto ele se divertisse com o coquetel de sabonetes líquidos que eu pré-selecionara para aquela noite, eu escolheria a trilha sonora do nosso “durante”. Música para sexo de primeiro encontro sempre é um assunto delicado. Certa vez um rapaz colocou Sade pra mim. Nada contra Sade, mas como aquilo foi cafa! Certa vez, meu shuffle me traiu e desempenhou um “Fantômas” no meio do nosso desempenho. Mike Patton é o homem mais sexy do mundo, mas dividindo os vocais com Cat Power ou Jenniffer Charles, não com satã.
E é por isso que trilha para sexo é uma arte ainda desvalorizada. Pode catalizar ou arruinar definitivamente o clima. Escolher um tema romântico de cara é pretensioso e canastrão. Deixar à mercê do shuffle do seu iTunes pode ser como abrir a caixa de Pandora. Botar um jazz, apesar de nunca ser errado, pode intimidar demais. Falta a sensação de estar à vontade, a liberdade pra falar uma besteira sem culpa. Afinal, imagina a pressão, fazer sexo com o intelectual apreciador de um gênero musical elegantérrimo quando você, vez ou outra, adora falar de cocô.
E é por isso que eu fiz uma playlist só com canções do Richard Cheese. É um perigoso cruzamento de um jazz refinado com o Tiririca, eu sei. Mas imagina só, que divertido. É a Britney Spears na voz de um fanfarrão, com contrabaixo acústico e metais precisos. É a forma palatável de ouvir a Fergie ou o inusitado Michael Jackson com coro infantil. E ele pode achar que você não é ousada na cama, e você, que ele transpira de uma forma não humana, e vocês descobrem que só há uma camisinha não-lubrificada. Mas quando Richard Cheese se atreve a fazer um mambo de Sunday Bloody Sunday, há essa coisa que nunca pode dar errado. Uma longa e inesperada risada compartilhada, mais instintiva e verdadeira que todos os rituais de reprodução. E com o poder necessário para preencher silêncios constrangedores e roubar a cena no caso de experiências desastrosas.
É claro que eu não teria problemas em me envolver com uma mulher. Contanto que ela tivesse um pênis. E a mais fiel semelhança física e vocal com o Mike Patton.
- Pode deixar que eu te levo em casa. Pegou tudo? Não esqueceu de nada mesmo?
- Não, acho que não.
- Bem, eu sinceramente espero que sim.
No momento em que me sentei ao seu lado percebi que já havíamos compartilhado um banco de ônibus antes. Havia outros assentos vagos, mas escolhi justo aquele porque era um banco alto. E se há algo da infância que a gente preserva por toda a vida é a satisfação de sentar nos bancos altos. Assim como pisar em folhas secas retorcidas e ouvir aquele "créc" delicioso, estourar plástico bolha ou sempre querer apertar o botão do elevador. Ainda assim, logo acomodada, percebi que foi uma escolha errada. Aquele era o rapaz que descia 3 pontos antes de mim. Isso é sempre um inconveniente quando eu não sento do lado da janela, porque eu sou sempre uma das últimas a descer do ônibus e quando sento do lado do corredor, sempre tenho que me levantar pra dar passagem pra outra pessoa. Sim, sempre. Eu sei que muitos não levantam, apenas viram o corpo para o lado, removendo as pernas do caminho. Mas ainda assim, é sempre muito desastroso passar com uma pessoa ali. E acredite, a última coisa que eu quero é um estranho esfregando a bunda em mim. Eu agradeço que pense que é muita gentileza da minha parte levantar-me e dar passagem. Não é. Apenas não esfregue sua bunda em mim.
O problema é que sou uma mulher desastrada que mal pode com a estrutura do próprio corpo (há pouquíssimo tempo comecei a me referir a mim mesma como "uma mulher". Isso tem certa graça. Acho que só adquiri esse hábito porque não queria que pensassem que eu sou uma mulher de 27 anos, inteiramente dissociada que ainda se denomina "menina". Mas juro, ainda sou uma menina). Além de desajeitada, pra ajudar, sempre tenho muitas coisas nas mãos. Uma bolsa gigantesca pra que caibam muitas outras coisas, nem sempre as coisas que se espera encontrar na bolsa de uma mulher (ou uma menina). E um casaco incrivelmente grande, porque sinto mais frio do que deveria ser permitido. Então eu abro a bolsa que pode cobrir um terço do meu corpo e de repente sou uma mulher com fones no ouvido e um livro aberto sobre o colo. E de repente isso tudo faz de mim a mulher mais inacessível que você pode encontrar num ônibus a caminho da Vila Olímpia. É bom que, assim que chegar a hora, todo o meu esforço para dar passagem à esse moço seja devidamente reconhecido (eu o chamo de moço, porque pra mim ele não é menino nem homem. Ele tem cara de quem escolhe pra quais pessoas ele deve se denominar homem ou menino). Sim, porque apesar de haver outros assentos com lugar vago do lado da janela, eu não vou trocar de lugar. Não vou fazer o pobre moço passar por esse constrangimento. Não há regras desse tipo, mas no meu manual pessoal e instransferível, eu respeito a regra que eu criei. No caso de sentar-se ao lado de alguém no ônibus, permaneça ali até seu ponto final, ainda que outros bancos fiquem vazios. A não ser que você seja perspicaz o suficiente pra perceber que está sentada ao lado de um potencial psicopata. Aí pode. Caso contrário, não faça a pessoa ao lado acreditar que ela fede. Por favor, tenha decência.
Eu percebo que no momento em que eu tiro o livro da bolsa, ele repara de rabo de olho em qual livro estou lendo. Geralmente, e isso ainda é um resgate não muito positivo da minha infância perturbada, eu dificulto o máximo que posso pra que a pessoa ao lado nunca consiga ver a capa do livro que estou lendo. Eu tenho muito orgulho dos livros que leio. Nunca são dos tipos comuns que se encontram em ônibus como esse. Nunca fazem parte de uma coleção de jornal ou dos best-sellers de uma megastore. E ainda que muitos sejam clássicos, sempre carregam o charme de serem velhos, carcomidos e adquiridos em sebos em ruínas. Ainda assim não gosto de olhadelas no que estou lendo. Mas dessa vez foi diferente. Eu o deixei bem exposto no campo de visão do companheiro de banco e sei que ele não teve dificuldades de ler o título em bold "É claro que você sabe do que eu estou falando". Este é o livro que eu queria ter escrito e que só não arranco e engulo cada uma de suas páginas porque ele foi publicado em Miryad. Eu detesto essa fonte. Tá, esse eu comprei numa megastore, mas ainda não deu tempo da Miranda July chegar aos sebos. Eu lembro de ter apertado forte o livro contra o peito e ter pensado "Deus! Nem acredito que esse livro é meu! Abençoe pra que seja um livro de lindas surpresas, que brilhe ao ser aberto e que não haja uma só linha parecida com o que eu escrevi na minha peça". Ninguém iria acreditar que eu não copiei essa mulher genial, ninguém iria acreditar que estamos apenas ligadas extra-sensorialmente, por uma porção de fatos que envolvem auto-piedade e a necessária capacidade de rir das próprias desgraças.
Aí estava. O moço já sabia que eu era uma mulher inacessível, vulnerável e apreciava literatura irônico-masoquista. E aí meu celular tocou. Meu celular é aquele cujo tema musical é o que me dá muito orgulho de ter escolhido, com um contrabaixo marcado e vocal feminino fazendo repetidos "bebeep". Agora ele sabe que eu sou uma mulher inacessível, vulnerável, apreciadora de literatura irônico-masoquista e uma esnobe que bota uma espécie de jazz metalinguístico como toque de celular. Era minha dentista no telefone, tentando marcar uma consulta para uma limpeza numa quinta pela manhã. Ele ouviu claramente quando eu disse "não posso na quinta porque tenho terapia". E em breves segundos ele já sabia que eu era uma mulher inacessível, vulnerável, apreciadora de literatura irônico-masoquista, uma esnobe que bota uma espécie de jazz metalinguístico como toque de celular e que possivelmente sofre de algum distúrbio social.
Não era minha culpa que, sabe-se lá como, eu acabava prendendo a ponta do casaco dele depois de uma curva do veículo. Achei um pouco grosseiro da parte dele puxar o casaco pra me remover de cima dele. Ainda mais agora que ele sabia demais sobre mim. Aliás, como eu me deixei expôr tanto pra um desconhecido no ônibus? Aquilo era ultrajante, assim que ele sinalizasse que iria descer, eu iria marcar apressadamente a página do livro, seguraria o iPod, o casaco e a bolsa, me levantaria para dar passagem e então o encararia, pra só então decidir o que fazer. Chegou o momento e eu decidi não fazer nada além de dar passagem. Desisti de fazer todas as coisas que você se sente desestimulada a fazer quando repara bem no moço ao lado e percebe que ele não é nada atraente. E depois, o que vocês esperavam que uma menina como eu dissesse para um homem completamente estranho?
Não é só o fato de colher elogios aleatórios, admiração sincera, exaltações variadas. É mais positivamente pelo fato de que, pela primeira vez, todas as demonstrações de Você está linda, mudada, diferente! antecedam a mesma pergunta "você está amando, namorando?" seguidas pela mesma resposta que acompanha um sorriso franco: "não, não estou".
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