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Eu precisava escrever algo triste. E uma alegria insolente tomara conta de mim para arruinar meus planos literários. Cadê a melancolia, a dorzinha da solidão, a lágrima compartilhada, o amor não correspondido? Perdera-se no abraço afetuoso, em dois e-mails redigidos com esmero, no copo de Nescau trazido à cama, no beijo sem pressa de boa noite. Eu tinha que agir com firmeza, antes de perder meus fiéis leitores. Oito anos ensimesmados, anunciando o armageddon do romance garantiam as parcelas do meu nobre apartamento. Mas agora havia litros de serotonina bloqueando o caminho dos brioches à minha mesa. Minha carreira estava condenada. Tudo o que eu queria era investigar se existia, em algum beco imundo, alguém vendendo o serviço de “desamarração para o amor”. Mas a droga da temperatura era agradável, as memórias do fim de semana eram seráficas, o perfume impregnado no meu vestido era embriagante e tocava "Stephanie Says" com Velvet Underground. Meu editor estava para me mandar às favas caso eu não entregasse mais um artigo amargurado, e era capaz de perseguir implacavelmente o cristão responsável pelos meus sorrisos autistas das últimas semanas.
Almocei observando uma chuva média umedecer o asfalto. E do outro lado da rua, vislumbrei minha salvação. Era um homem taciturno, sem guarda-chuva, caminhando vagarosamente, desgovernado em melancolia. O homem, na sua lentidão, era uma intervenção entre os passantes, apressados em se abrigar. Aquele homem não queria se proteger nem fugir da chuva. Não queria preservar o perfeito engomado de sua camisa nem reagir às folhas de árvore que se misturavam aos seus cabelos. Eu conhecia aquela sensação de indiferença. De quando se deseja maltratar o corpo com uma chuva fria para apagar outros maus tratos. De quando pouca coisa importa e até se acha graça de quem ingenuamente corre para se defender seja lá do que for.
Estava a centímetros de distância do triste andarilho. Pronta para cutucar-lhe o ombro e sondar-lhe a alma. Pronta para implorar que partilhasse comigo suas lamúrias e murmurações. Pronta para contaminar-me da sua depressão e dividir o espaço sob a nuvem mais negra daquele quarteirão. Mas havia um poste no caminho. Com um anúncio cor-de-rosa, xerocado a uma cor: “amarração para o amor – Madame Agnes Ventura”. É isso – pensei. Irrompi-me num riso histérico. Arranjei um pseudônimo tão patético quanto “Agnes Ventura”. Pude enfim, escrever sobre nós dois.
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