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E foi bem assim, eu olhei pro recipiente, ele ficou ali imóvel como costumam ficar os objetos inanimados de inox, e eu decidi ousar. Pus um pedaço minúsculo de joelho de porco no meu prato. Era um exercício de abstração. Se eu não tivesse essa experiência, eu ficaria para sempre presa num período da infância, aquela em que nos deixamos sugestionar facilmente pelo nome estranho dos pratos ou pelas comidas de cor verde.
Tentei me convencer que era só mais uma etapa a vencer, ali naquele restaurante self-service. Com o tempo, eu aprendi a apreciar cebola, mostarda, culinária japonesa e noticiário na TV. Foram passos gigantescos que me trouxeram à fase adulta. Não era um prato alemão de nome esquisito que ia me impedir de avançar. Afinal, pensei comigo mesma, muitos momentos da minha vida foram dedicados a comer porco. Eu adoro o sabor do bichinho. Tudo o que ele pode oferecer. Lingüiça, bacon, torresmo, pernil... NÃO HAVIA UMA SÓ COISA QUE EU NÃO GOSTASSE DELE e dizer isso em caixa alta é de certa forma libertador, porque quem gosta de porco, gosta com culpa. Pelo menos eu cresci numa geração em que é quase feio admitir o quanto se gosta de porco. Afinal, é sujo, não é? Hoje não é mais, ninguém cria mais porco na lama, mas na minha infância, a imagem da carne de porco sempre esteve associada a muitos litros de água escaldante. Comer porco fora de casa era um atestado de suicídio. Porco lembra impureza. Lembra aula de biologia. Lembra zoonose. Lembra proibição judaica. Acho que é por isso que ainda hoje eu me sinto vigiada quando boto uma bistequinha no prato. Alguém deve estar me julgando em silêncio.
Restaurante self-service tem dessas. Se você não põe nada de salada, é porque tem paladar infantil. Se põe só salada, é uma neurótica com mania de dieta (que provavelmente vai compensar a ausência do pastelzinho com uma torta mousse ultra-calórica de sobremesa). Se põe muita fritura, é uma inconseqüente de maus hábitos. Se escolher massa, alguém vai conferir seu prato e a sua silhueta, alternadamente. E vai me dizer que você nunca olhou com maus olhos um obeso almoçando no Mc Donald’s? Nem nunca torceu o nariz pra patricinha que repete como um mantra a frase “só um pedacinho, bem pequeno” pra qualquer pessoa que for lhe servir alguma coisa?
Pois bem. Hoje deveria ser um dia de novas experiências. De novos desafios. De pouco se foder com o que os outros acham do seu prato. Até o salsichão ajudou a compor a refeição. E salsichão também é polêmico. Não se come salsichão na presença de adolescentes, por exemplo. Se eles não fizerem uma piada pejorativa, podem entrar em combustão espontânea. Fora todo o residual negativo de qualquer salsicha. Nenhum outro alimento tem pior reputação. Já foram comparadas até mesmo à política e todo mundo diz ter conhecido uma fábrica de salsichas de perto. Mas eu não estou falando de salsichas. Estou falando do joelho de porco. Esse pedaço que também faz parte do animalzinho que eu sempre achei saboroso. Por que então parecia tão pitoresco? Por Deus, é igualmente perturbador comer outras partes do seu corpo! Na verdade só é mais fácil nas outras situações porque alguém foi esperto o suficiente pra fazer todo o resto parecer comida, não seres vivos. Alcatra, picanha, filet mignon. Mas nunca bochecha de vaca, bunda de boi, barriga de porco. Eu tenho joelhos. Eles não parecem apetitosos. Mas joelho é só mais um pedaço que os alemães decidiram implementar na dieta e a maioria deles parece bem satisfeito. Até deixaram o resto mundo associar o prato à sua cultura, não é mesmo?
Racionalizei tanto em cima do mísero pedaço de carne que nem achei que teria mais problemas com a palavra “joelho”. Mas como ela me incomodava! Tentei convencer-me que, assim como tudo que se prova pela primeira vez destemidamente, uma vez na boca seria fácil superar todo o peso que a palavra “joelho” carrega, e eu poderia apreciar, encantada, o sabor ímpar daquela iguaria. Dirigi o garfo, estoicamente em direção à boca. E então me senti vencida pela potência inigualável da semântica. Eu posso garantir, minha gente, aquela porcaria tem MESMO gosto de joelho!
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