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No momento em que me sentei ao seu lado percebi que já havíamos compartilhado um banco de ônibus antes. Havia outros assentos vagos, mas escolhi justo aquele porque era um banco alto. E se há algo da infância que a gente preserva por toda a vida é a satisfação de sentar nos bancos altos. Assim como pisar em folhas secas retorcidas e ouvir aquele "créc" delicioso, estourar plástico bolha ou sempre querer apertar o botão do elevador. Ainda assim, logo acomodada, percebi que foi uma escolha errada. Aquele era o rapaz que descia 3 pontos antes de mim. Isso é sempre um inconveniente quando eu não sento do lado da janela, porque eu sou sempre uma das últimas a descer do ônibus e quando sento do lado do corredor, sempre tenho que me levantar pra dar passagem pra outra pessoa. Sim, sempre. Eu sei que muitos não levantam, apenas viram o corpo para o lado, removendo as pernas do caminho. Mas ainda assim, é sempre muito desastroso passar com uma pessoa ali. E acredite, a última coisa que eu quero é um estranho esfregando a bunda em mim. Eu agradeço que pense que é muita gentileza da minha parte levantar-me e dar passagem. Não é. Apenas não esfregue sua bunda em mim.
O problema é que sou uma mulher desastrada que mal pode com a estrutura do próprio corpo (há pouquíssimo tempo comecei a me referir a mim mesma como "uma mulher". Isso tem certa graça. Acho que só adquiri esse hábito porque não queria que pensassem que eu sou uma mulher de 27 anos, inteiramente dissociada que ainda se denomina "menina". Mas juro, ainda sou uma menina). Além de desajeitada, pra ajudar, sempre tenho muitas coisas nas mãos. Uma bolsa gigantesca pra que caibam muitas outras coisas, nem sempre as coisas que se espera encontrar na bolsa de uma mulher (ou uma menina). E um casaco incrivelmente grande, porque sinto mais frio do que deveria ser permitido. Então eu abro a bolsa que pode cobrir um terço do meu corpo e de repente sou uma mulher com fones no ouvido e um livro aberto sobre o colo. E de repente isso tudo faz de mim a mulher mais inacessível que você pode encontrar num ônibus a caminho da Vila Olímpia. É bom que, assim que chegar a hora, todo o meu esforço para dar passagem à esse moço seja devidamente reconhecido (eu o chamo de moço, porque pra mim ele não é menino nem homem. Ele tem cara de quem escolhe pra quais pessoas ele deve se denominar homem ou menino). Sim, porque apesar de haver outros assentos com lugar vago do lado da janela, eu não vou trocar de lugar. Não vou fazer o pobre moço passar por esse constrangimento. Não há regras desse tipo, mas no meu manual pessoal e instransferível, eu respeito a regra que eu criei. No caso de sentar-se ao lado de alguém no ônibus, permaneça ali até seu ponto final, ainda que outros bancos fiquem vazios. A não ser que você seja perspicaz o suficiente pra perceber que está sentada ao lado de um potencial psicopata. Aí pode. Caso contrário, não faça a pessoa ao lado acreditar que ela fede. Por favor, tenha decência.
Eu percebo que no momento em que eu tiro o livro da bolsa, ele repara de rabo de olho em qual livro estou lendo. Geralmente, e isso ainda é um resgate não muito positivo da minha infância perturbada, eu dificulto o máximo que posso pra que a pessoa ao lado nunca consiga ver a capa do livro que estou lendo. Eu tenho muito orgulho dos livros que leio. Nunca são dos tipos comuns que se encontram em ônibus como esse. Nunca fazem parte de uma coleção de jornal ou dos best-sellers de uma megastore. E ainda que muitos sejam clássicos, sempre carregam o charme de serem velhos, carcomidos e adquiridos em sebos em ruínas. Ainda assim não gosto de olhadelas no que estou lendo. Mas dessa vez foi diferente. Eu o deixei bem exposto no campo de visão do companheiro de banco e sei que ele não teve dificuldades de ler o título em bold "É claro que você sabe do que eu estou falando". Este é o livro que eu queria ter escrito e que só não arranco e engulo cada uma de suas páginas porque ele foi publicado em Miryad. Eu detesto essa fonte. Tá, esse eu comprei numa megastore, mas ainda não deu tempo da Miranda July chegar aos sebos. Eu lembro de ter apertado forte o livro contra o peito e ter pensado "Deus! Nem acredito que esse livro é meu! Abençoe pra que seja um livro de lindas surpresas, que brilhe ao ser aberto e que não haja uma só linha parecida com o que eu escrevi na minha peça". Ninguém iria acreditar que eu não copiei essa mulher genial, ninguém iria acreditar que estamos apenas ligadas extra-sensorialmente, por uma porção de fatos que envolvem auto-piedade e a necessária capacidade de rir das próprias desgraças.
Aí estava. O moço já sabia que eu era uma mulher inacessível, vulnerável e apreciava literatura irônico-masoquista. E aí meu celular tocou. Meu celular é aquele cujo tema musical é o que me dá muito orgulho de ter escolhido, com um contrabaixo marcado e vocal feminino fazendo repetidos "bebeep". Agora ele sabe que eu sou uma mulher inacessível, vulnerável, apreciadora de literatura irônico-masoquista e uma esnobe que bota uma espécie de jazz metalinguístico como toque de celular. Era minha dentista no telefone, tentando marcar uma consulta para uma limpeza numa quinta pela manhã. Ele ouviu claramente quando eu disse "não posso na quinta porque tenho terapia". E em breves segundos ele já sabia que eu era uma mulher inacessível, vulnerável, apreciadora de literatura irônico-masoquista, uma esnobe que bota uma espécie de jazz metalinguístico como toque de celular e que possivelmente sofre de algum distúrbio social.
Não era minha culpa que, sabe-se lá como, eu acabava prendendo a ponta do casaco dele depois de uma curva do veículo. Achei um pouco grosseiro da parte dele puxar o casaco pra me remover de cima dele. Ainda mais agora que ele sabia demais sobre mim. Aliás, como eu me deixei expôr tanto pra um desconhecido no ônibus? Aquilo era ultrajante, assim que ele sinalizasse que iria descer, eu iria marcar apressadamente a página do livro, seguraria o iPod, o casaco e a bolsa, me levantaria para dar passagem e então o encararia, pra só então decidir o que fazer. Chegou o momento e eu decidi não fazer nada além de dar passagem. Desisti de fazer todas as coisas que você se sente desestimulada a fazer quando repara bem no moço ao lado e percebe que ele não é nada atraente. E depois, o que vocês esperavam que uma menina como eu dissesse para um homem completamente estranho?
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